terça-feira, 28 de abril de 2015

A terceirização e o Poder Público

O projeto de lei aprovado na Câmara e que seguiu para deliberação do Senado prevê, entre outras coisas, a terceirização das atividades fins do contratante, ou seja, das atividades que são o foco da empresa. Com isso, pretende-se derrubar a Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, que limita a terceirização às atividades meios, ou atividades auxiliares.

Ao ser aprovado na Câmara, o projeto vedou a terceirização de atividades fins nas empresas públicas e estatais, mas o governo federal tenta convencer o Senado a retirar essa vedação, sob a alegação de que as empresas públicas e estatais perderão competitividade perante os concorrentes.

Se tal absurdo for permitido, será extinto o concurso público, o mais precioso instrumento, e talvez o único, que dá respaldo ao princípio da isonomia, ou, então, o maior obstáculo à prática do nepotismo. Não tenho dúvida de que atividades de carreira são preenchidas mediante concurso público. Vai daí que a medida, se for aprovada, viola frontalmente a Constituição Federal.

Imaginem os gerentes do Banco do Brasil e da Caixa Econômica terceirizados. Imaginem os engenheiros da Petrobrás terceirizados. Imaginem os auditores fiscais terceirizados. Os professores, os médicos (parte já é), os vigilantes sanitários, os fiscais ambientais, os procuradores. Imaginem os técnicos administrativos, os técnicos de informática, os técnicos do IBGE, do BNDES, do Banco Central, tudo terceirizado. A estripulia seria fácil de armar: monta-se uma empresa fornecedora de mão de obra e fecha-se contrato. Os companheiros e companheiras, os amigos, os aparentados e semiaparentados, os parasitas de passeatas, todos aqueles que não têm a mínima condição de ser aprovado em concurso público, ingressam pelas janelas escancaradas da terceirização.

A Petrobrás, por exemplo, possui atualmente 86 mil funcionários efetivos e, pasmem prezados leitores, 360 mil servidores terceirizados! Esses 86 mil funcionários ingressaram por concurso público e ainda são eles que tentam desesperadamente segurar a barra de uma empresa destroçada pelo achincalhe e pela vergonha.

Somente o governo federal tem: 39 Ministérios; 128 autarquias; 34 fundações; e 140 empresas estatais. Sem falar nos governos estaduais e municipais. Apenas para exemplo, a Prefeitura da Cidade de São Paulo tem 26 secretarias e 31 subprefeituras, além das suas autarquias, empresas públicas, conselhos e comissões especiais. Emprego com folga para todos os amigos do rei ou da rainha!

E a capacitação técnica? Ora, alguém está preocupado com isso? Segundo o ranking do “The Global Competitiveness Report – 2014-2015, a medição da qualidade dos serviços públicos, entre 144 países, situou o Brasil em 136º lugar. Não está bom? Ainda há oito países no mundo piores do que nós.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

A miopia na administração pública

O renomado Professor Francisco Mangieri lançou recentemente a sua obra “Administração Tributária Municipal – Eficiência e Inteligência Fiscal”. Neste livro, Mangieri não teme em provocar os leitores com ideias inovadoras para aplicação na administração fazendária, algumas de natureza tão óbvia que chega a surpreender a necessidade de afirmá-las para que sejam lembradas e adotadas.

Uma delas é a quebra da burocracia “burra”, a não confundir a burocracia formal requerida nos atos administrativos com aqueloutras de exigências abstrusas e absurdas, que não servem rigorosamente para nada, a não ser para atormentar os contribuintes e encher de papéis inúteis as prateleiras das repartições.  

Outro dia, perdi uma licitação porque faltou na entrega do imenso volume de papelório o “Demonstrativo do Índice de Liquidez Geral” da empresa, demonstrativo que deveria ser assinado pelo Sócio e pelo Contador, ambos com firma reconhecida, papel timbrado etc.. Argumentei: “Mas, meu amigo, o Balanço foi apresentado, está aí. Basta dividir o Ativo Circulante pelo Passivo que você terá o tal índice de liquidez geral”. O servidor – imagine – membro da comissão de licitação, respondeu: “Olha! Eu nem sei para que serve esse índice e não tenho a mínima ideia de como se calcula, mas faz parte das exigências e não abro mão!”. A licitação era para ministrar um curso de dois dias, e, é lógico, há sempre uma preocupação de a empresa quebrar antes de concluir serviço de tão longa duração.  

Mangieri prega o desmantelamento total desse jurássico ranço burocrático que ainda infesta as repartições. Na verdade, o que ele deseja é que o gestor dê uma parada na rotina e repense sobre a praticidade e utilidade real dessa parafernália de obrigações. E não dizer que servidor público não tem tempo para dar uma parada. Isso é balela. Tem tempo, sim, o que falta é disposição e vontade de fazer. O que o autor destaca, daquele seu jeito polido e educado de escrever, é que o gestor deixe de administrar só com os olhos no retrovisor, como se os procedimentos utilizados no passado ainda se sustentam nos tempos atuais.

Outro ponto crítico citado pelo professor é o circuito processual, muito parecido com esses circuitos de corrida de carros, cheios de voltas e curvas para chegarem ao mesmo ponto de partida. Meu Deus! Uma via-crúcis, com todo o respeito. O processo administrativo passa por tanta gente, a maioria apenas para despachar “prossiga”, ou “ao setor tal”, e cada processo levando uma semana ou mais na mesa ou na gaveta do despachador. Por que não ir direto a quem decide? Aliás, o status do servidor público se mede pelo número de carimbos que dispõe. Servidor importante tem dezenas de carimbos em sua mesa: “Encaminha-se”, “Arquive-se”, “Ao Protocolo”, “Para falar”, “Notifique-se”, “Cientifique-se”, todos eles, assim, enfileiradinhos, em cima da mesa, tudo arrumadinho, cada um com um esparadrapo em cima, dizendo o teor do despacho que trata.

E os arquivos? Aquela montoeira de arquivos de aço abarrotados de papel. Melhor dizer, de aço, não, de ferrugem. Arquivos sem alça, desmantelados, tudo caindo aos pedaços. E guardando o quê? Papéis velhos, sujos, rasgados, a maior parte sem qualquer utilidade ou serventia. Em tempos remotos, um chefe novo do Cadastro Mobiliário perguntou para que servia uma dezena de arquivos a ocupar enorme espaço. Disseram-lhe que aqueles arquivos guardavam fichas de profissionais autônomos. Ali estavam os nomes dos profissionais inscritos desde a inauguração do setor, uns quarenta anos atrás. Para desespero dos funcionários antigos, o novo chefe mandou esvaziar os arquivos e fez uma grande fogueira de São João no pátio da Prefeitura.

Nunca ninguém sentiu falta daqueles documentos.

Está na hora de os gestores públicos procurarem o oftalmologista. A miopia pode ser genética, mas tem cura. 

Nota – O livro citado do Professor Francisco Ramos Mangieri foi editado pela Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2015. 

sexta-feira, 10 de abril de 2015

O escândalo da Petrobrás na comunidade

Fui de manhã comprar o pão de cada dia e encontrei diversos conhecidos da comunidade conversando em frente da banca de jornais do Daniel. A dona BPereira estava, como sempre, exaltada: “Por que a polícia não mete a porrada? Polícia só bate em pobre!”, dizia ela com as mãos segurando a barriga enorme. Dona BPereira vive grávida, já é o seu estado normal.

Quis saber o assunto da discussão e o Daniel me explicou que o tema era a roubalheira na Petrobrás. Dona BPereira interveio: “Não é isso que estamos discutindo! Eu quero saber por que essa tal de Djanira ainda não foi presa!”.

Seu Broa concordou com aquela sua voz mansa: “Neste ponto, concordo com a BPereira; essa tal de Djanira já foi encontrada em várias casas de criminosos e sempre é solta. Deve ter um baita pistolão”. 

“Djanira?”.  O Daniel explicou: “Sabe que é doutor? O jornal está dizendo que a polícia entrou numa casa ontem e prendeu novamente essa tal de Djanira. Em toda invasão de casa lá está ela!”.

Chinelinho, com sua voz estridente, gritou: “E tem um tal de Picasso que também já foi preso um monte de vezes!”. O Índio das Verduras protestou: “Oh, Chinelinho, modera a sua boca! Têm senhoras no recinto! Nada de palavrão!”. Dona BPereira deu uma gargalhada: “Não liga não, Índio, homem que se diz picasso vai ver na hora não tem nada, kkkkkk”.

O Henheco, o eletricista extremista, comentou furioso: “Na verdade, só estão prendendo os comunistas. A burguesia está solta. Numa dessas invasões pegaram um gringo, um tal de Land Rover, e nunca mais tivemos noticia dele”.

Resolvi entrar na conversa: “Mas, Henheco, vários empreiteiros foram presos...”. Ele deu uma risadinha irônica: “Ora, doutor, foram presos por que ajudaram o PT. O senhor não ouviu falar no bom burguês?”

A dona Zica da Tainha entrou na conversa: “E os ratos? Jogaram ratos na dona Dilma”. Henheco voltou a carga: “Ratos não! A burguesia nem conhece rato e jogou aquele porquinho da Índia pensando que era rato!”.

Fiz outra intervenção: “Não era porquinho da Índia, era Hamster”. Henheco: “Era o quê?” Respondi: “Hamster, parece rato, mas não é”.

Ele deu um sorriso irônico: “Estão vendo? Até rato de burguês tem nome diferente”.

Seu Manuel gritou na frente da padaria: “Já saiu o pão!”. Aproveitei a deixa, caí fora e fui comprar o meu pão. De longe, ouvi Chinelinho perguntar ao pessoal: “Será que esse gringo, esse tal de Hamster, vai ficar na cadeia?”. 

terça-feira, 7 de abril de 2015

A viagem

Certa vez, fui dar um curso numa cidade bem próxima do fim do mundo, lá onde o vento faz a curva e retorna. Na cidade do aeroporto peguei um ônibus velho e empoeirado que seguiu em direção oeste por uma estrada asfaltada, até aí tudo muito bem, mas, uns cem quilômetros depois, dobrou repentinamente para entrarmos numa estrada de terra vermelha esburacada e sob um sol arrasador. O motorista gritou, provavelmente para mim, pois eu era o único passageiro: “Acabou o conforto!”.

Durante toda a manhã viajamos pela região deserta, sacolejando, entrando e saindo dos buracos, como se a estrada fosse um mar revolto. Às vezes, o buraco era tão fundo que o sol sumia e fazia sombra no interior do ônibus e eu chegava a pensar nunca mais sair das profundezas. Depois do grito avisando o final do conforto, o motorista nada mais disse, talvez por estar assoberbado trocando as marchas para descer e subir os barrancos escarpados.

Já passava do meio dia quando nos aproximamos de um vilarejo localizado exatamente no meio de nada, um nada repleto de nada, formado por um caminho com meia dúzia de casebres irregulares apoiados no chão vermelho. “Uma hora para almoço!”, gritou o motorista lá da frente, descendo rápido do ônibus e sumindo por detrás de um dos casebres.

Na rua (vamos chamar de rua), uma bomba de combustível movida à mão, onde o ônibus estacionou, e ao lado um telheiro com uma placa gasta pelo tempo, da qual fui forçado a aproximar-se para ler as palavras “Max Restaurante”. Debaixo do telheiro, algumas mesas de dobrar forradas com oleado. Aos fundos, uma mulher mexia nas panelas esfumaçadas sobre um fogão de lenha. Um homem magro de bermuda e sem camisa surgiu dos fundos, arrastando os pés e levantando poeira. “Pode escolher uma mesa”, disse ele. Como não havia ninguém, sentei na cadeira de qualquer uma. Eu estava sedento. “O senhor pode me trazer uma garrafa de água?”, pedi ao homem magro. Ele não respondeu, retornou ao fundo e gritou para a mulher: “Solta um pf!”.

Voltou com a água e logo depois a mulher desabou na minha mesa um prato de feijão, arroz e uma carne gordurosa cujo gosto até hoje não esqueci. E enquanto eu comia, surgiram as moscas e os mosquitos.

A partir daquele dia passei a respeitar as moscas. São bichos organizados, trabalham de forma orquestrada, pousam em nuvem e se afastam em conjunto ao comando da minha mão. Ao deixar de abanar, elas voltam agrupadas e todas pousam no meu prato. Faço um abano e elas fogem. Sem eu saber, firmamos um pacto consensual, uma espécie de acordo de princípios: cada um come no momento certo. Quando abano, sou eu a dar uma garfada; paro de abanar, é a vez delas. Se não fosse os mosquitos eu até me divertiria com o jogo das moscas.

Os mosquitos atacaram nas pernas, mas sem qualquer organização, uma verdadeira bagunça! Havia diversos tipos de mosquitos. Grandes, enormes, médios, pequenos e do tipo mignon. Todos querendo ao mesmo tempo encontrar uma brecha na minha roupa para sugar o meu sangue. Aprendi que os mosquitos são truculentos entre eles e os pequeninos, coitadinhos, não conseguiam se alimentar, pois eram barrados pelos valentões.

Percebi que um aedes exercia certa liderança em razão do seu porte. Mosquitona imponente, parecia uma rainha, posso até dizer que era bonitona, bem jeitosa. E os outros tinham medo dela. Quando ela pousava, todos se afastavam, curvando a cabeça respeitosamente. Até que surgiu uma ochlerotatus e tentou promover uma rebelião republicana, mas a rebelde fugiu perseguida pelos asseclas da rainha aedes, sob um protesto tímido de pernilongos do gênero culex. Neste momento, um esperto mutunzinho aproveitou a oportunidade para me dar uma ferroada.

Voltei para o ônibus me sentindo mais leve. Apesar da comida gordurosa.