Numa fazenda longínqua, encravada nos grotões do interior, uma criança nasceu com duas cabeças, para o horror de seus pais. Mesmo assim, a criança sobreviveu e cresceu, mas confinada no interior da casa e escondida de todos os demais. Somente os pais sabiam daquele horrível segredo.
As cabeças eram independentes, cada qual com seus pensamentos, ideias e sentimentos, e quando aprenderam a falar conversavam entre elas. Tornaram-se amigas, apesar de alguns atritos quando suas vontades divergiam: uma queria dormir, outra queria andar; uma queria tomar banho, outra queria brincar. Acabaram por entender que nunca seriam totalmente independentes por terem um só corpo.
Pediram aos pais uma solução do problema, mas estes não conseguiram resolvê-lo, os pais eram pessoas de poucas luzes e fraco discernimento. As cabeças viviam às turras, mas evitavam se bater, pois a dor era compartilhada, como se alguém desse um soco na própria barriga. Preferiam, então, apenas discutir e não chegar às vias de fato, se o sofrimento era recíproco.
Ao aprenderem com a mãe a arte de ler e escrever, uma verdadeira surpresa surgiu: somente a cabeça do lado direito conseguia escrever; a outra, que usava a mão esquerda, nada conseguia, exceto garatujas e letras tortas, indecifráveis. A cabeça do lado direito aproveitou-se dessa diferença a propor à outra uma liderança de poder. Afinal, a capacidade de escrever era uma prova de sua ascendência sobre a outra, a deixar entendido nas entrelinhas que ela era a mais inteligente. A cabeça do lado esquerdo teve que concordar, a capacidade de escrever era, sem dúvida, um fato relevante.
Resolvida a liderança, as cabeças se nomearam: Rei, a do lado direito; Povo, a do lado esquerdo. E que o Povo obedecesse sempre às ordens do Rei.
Quando os pais morreram, coube ao homem de duas cabeças administrar suas terras. Quem devia lavrar era o Povo, mas o Rei ia junto, a cochilar sobre o seu ombro. Quando o Rei se recostava na poltrona para ler um livro, ou planejar a gestão da propriedade, o Povo dormia profundamente, cansado por suas árduas tarefas. E, assim, os conhecimentos de um cada vez mais se distanciavam dos conhecimentos do outro. O Povo conhecia as técnicas do cultivo da terra, de cozinhar, de consertar as coisas; o Rei conhecia os segredos da política, das artes culturais, da filosofia, do gerenciamento.
Até que um dia o Povo se revoltou: chegou à conclusão que só ele trabalhava e o outro se reconfortava nos prazeres da vida. A discussão foi acalorada, a dizer o Rei que o corpo também lhe pertencia, o cansaço dos trabalhos rotineiros também lhe alcançava, mas o Povo gritava que enquanto trabalhava o Rei dormia e só colhia os frutos. E desta vez, houve luta sangrenta, o Povo enfiou uma faca no coração do Rei. E morreram os dois.
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