segunda-feira, 15 de junho de 2020

As novas regras do Alvará de Estabelecimentos


Roberto A. Tauil - Junho de 2020.

Já faz tempo que os empresários, diretamente ou através de suas entidades de classe, reclamam da excessiva burocracia e demora na liberação dos estabelecimentos comerciais, industriais e de serviços pelos órgãos municipais. Chegam a dizer que, em alguns casos, a Prefeitura demora mais de um ano para permitir a abertura de suas portas ao público. E alegam, também, que em muitos Municípios o empresário é obrigado a obter mais de uma licença (alvará), às vezes até três, uma de cada órgão do governo municipal, numa alucinante e interminável repetição processual.

Essas reclamações repercutiram nos ouvidos liberais dos governantes. E daí veio a declaração de efeito midiático da “Liberdade Econômica”, constituída, inicialmente, de uma Medida Provisória que visava reduzir a tramitação administrativa e os empresários pudessem, finalmente, colocar em funcionamento os seus estabelecimentos, de forma mais rápida, sem excessos burocráticos e receios de entraves surpreendentes.

A Lei Federal n. 13.874, de 20/09/2019, foi originária da Medida Provisória n. 881, e trata dos procedimentos dispensados à liberação de estabelecimentos, em âmbito federal, estadual e municipal. Todavia, o impacto maior se dá exatamente na esfera municipal, pois compete aos municípios a decisão final de liberar ou não a abertura de um estabelecimento econômico.

Isso decorre da competência dos Municípios de exercer a polícia administrativa das atividades urbanas em geral, para ordenação da vida da cidade, incluindo o zoneamento urbano e o plano diretor urbanístico. Tal competência se estende a todas as atividades e estabelecimentos urbanos, desde a sua localização até a instalação e funcionamento, “não para o controle do exercício profissional e do rendimento econômico, alheios à alçada municipal, mas para a verificação da segurança e da higiene do recinto, bem como da própria localização do empreendimento em relação aos usos permitidos nas normas de zoneamento da cidade” (Helly Lopes Meirelles, grifado).

O comentário acima do saudoso Professor Helly Lopes Meirelles nos faz lembrar certas exigências de alguns Municípios, como a de cobrar taxa de cada contribuinte e não do estabelecimento. Assim, se um escritório tem três profissionais, o Município vai ao extremo absurdo de cobrar três taxas de fiscalização, em vez de uma, pois o estabelecimento é um só. Evidentemente, imposto é uma coisa e taxa é outra.

Ao analisar o teor da Lei n. 13.874, deve-se enfatizar rigorosamente que as suas normas não se aplicam ao exercício do direito tributário, conforme acentua o § 3º do art. 1º:
“§ 3º - O disposto nos arts. 1º, 2º, 3º e 4º desta Lei não se aplica ao direito tributário e ao direito financeiro, ressalvado o inciso X do caput do art. 3º”.

A dizer, então, que a Lei n. 13.874 não trata da incidência de tributos sobre o exercício de atividades dos estabelecimentos. A dizer melhor, a lei federal não tem o poder de vedar a incidência de taxas sobre o funcionamento e a fiscalização de estabelecimentos.

A própria Constituição Federal estabelece no seu art. 145:

“Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: I - impostos; II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição; III - contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas” (grifamos).

Por evidência, uma lei federal ordinária não tem o poder de suprimir ou alterar uma norma constitucional.

Dito isso, afirmamos que as taxas de poder de polícia, decorrente do exercício regular de fiscalização dos estabelecimentos continuam permitidas, de acordo com a lei de cada Município. A Lei n. 13.874/2019 cuida especialmente da liberação do Alvará de Localização e Funcionamento. Nas palavras de Helly Lopes Meirelles, “o alvará é o instrumento da licença ou da autorização para a prática de ato, realização de atividade ou exercício de direito dependente de policiamento administrativo. O alvará expressa o consentimento formal da Administração à pretensão do administrado, requerida em termos”.

Como se vê, alvará é instrumento e é liberado na medida em que as exigências da legislação forem cumpridas. Em outras palavras, o alvará é o documento que atesta e garante o funcionamento do estabelecimento, por ter sido aprovado pela Fiscalização.

Neste sentido, pode-se dizer tranquilamente que NÃO EXISTE TAXA DE ALVARÁ! Pois o alvará não é vendido! Alvará não se compra com o pagamento de taxa! Seria até indecente/imoral liberar alvará em razão do pagamento de taxa, ou qualquer outro tipo de pagamento. Para receber o alvará, o Estabelecimento tem que estar apto em termos de localização, segurança, asseio, higiene, sossego público etc., e tudo isso é verificado pela Fiscalização, que tem um custo para exercer tal função. Portanto, cobra-se taxa, não pela liberação do alvará, mas em decorrência do exercício regular da fiscalização, do trabalho de vistoria do estabelecimento e da análise dos documentos apresentados.

Sendo assim, retornando aos ensinamentos de Helly Lopes Meirelles, o alvará é um bem patrimonial de seu titular, alienável e transferível a terceiros, juntamente com o estabelecimento licenciado, pois a este é vinculado e o acompanha em suas mutações negociais. Assim, se um estabelecimento é vendido, sem alterações em suas atividades, o alvará continua em vigor, podendo até sofrer alteração da razão social, mas não perde o seu valor jurídico. Em outras palavras, se o estabelecimento permanecer igual (mesma atividade), se não houver necessidade de renovar a vistoria do Corpo de Bombeiros (o que deve ser exigido para algumas atividades de alto risco), não faz sentido algum obrigar os contribuintes a renovar o alvará anualmente!

O que se cobra anualmente é a taxa pelo exercício regular de poder de polícia, desde que haja realmente um quadro de carreira de servidores fiscais daquela área específica. Ou seja, Fiscalização de Posturas (e não Tributária); Fiscalização Sanitária (ou Vigilância Sanitária); Fiscalização do Meio Ambiente. São essas as fiscalizações de poder de polícia do Município que fiscalizam estabelecimentos. São também Fiscais de poder de polícia, os de Obras e os de Transporte Público, mas esses nada têm a ver com fiscalização de Estabelecimentos que exercem atividades econômicas.

O art. 3º da Lei n. 13.874/2019 estabelece como direito de toda pessoa, natural ou jurídica, desenvolver atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica (inciso I do referido artigo).

Observa-se que o dispositivo acima é restrito às atividades econômicas de baixo risco. Deste modo, é preciso instituir uma classificação de risco para todas as atividades, entendendo-se que somente aquelas de baixo risco estariam dispensadas de obter o alvará para funcionamento.  Mas, de que risco a lei está se referindo? Refere-se ao risco de colocar em perigo o bem-estar, a saúde e a segurança da coletividade, a lembrar-nos da supremacia do interesse coletivo sobre o interesse individual.

Neste aspecto, a Lei n. 13.874/2019 prevê ato do Poder Executivo Federal sobre a classificação de risco das atividades, que deverá ser observado se não houver legislação própria estadual, distrital ou municipal específica. E caso não haja ato do Poder Executivo Federal, será aplicada resolução do CGSIM - Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios.

Para simplificar, abaixo a cronologia dos atos:

- Em 30 de abril de 2019 é publicada a Medida Provisória n. 881;
- Em 11 de junho de 2019 é publicada a Resolução n. 51 do CGSIM;
- Em 20 de setembro de 2019, a Medida Provisória n. 881 é convertida na Lei n. 13.874;
- Em 18 de dezembro de 2019, é publicado o Decreto federal n. 10.178.

Deste modo, a situação dos Municípios é a seguinte: ou aprova lei própria sobre a classificação de risco dos estabelecimentos, ou se obriga a adotar o que está previsto na Resolução n. 51 do CGSIM. Um alerta: o Decreto federal n. 10.178 é direcionado aos órgãos federais, mas pode ser acolhido subsidiariamente pelos Estados e Municípios, se esses assim desejarem.

Em tal situação, o recomendável seria seguir as regras da Resolução n. 51 para os Municípios que ainda não formularam suas leis. Os Municípios que saíram na frente e já aprovaram as suas leis estão tranquilos, e não devem se preocupar com algumas oposições entre as regras federais e as locais, pois vale o que está escrito em suas próprias leis.

Todavia, totalmente impossível definir as regras de risco por meio de decreto municipal. Torna-se indispensável a aprovação de uma lei local, capaz, então, de dispor o Município de regras próprias que venham a classificar os estabelecimentos nele instalados por grau de risco.

A lei pode classificar os estabelecimentos em três níveis de risco:
I - nível de risco I - para os casos de risco leve, irrelevante ou inexistente;
II - nível de risco II - para os casos de risco moderado; ou
III - nível de risco III - para os casos de risco alto.

Cabe mencionar que a dispensa do alvará não significa dispensa da inscrição municipal. Nenhum estabelecimento pode abrir suas portas ao público, não importa o risco que envolva a sua atividade, sem requerer a sua inscrição no cadastro de atividades econômicas da Prefeitura. Se as autoridades locais fecharem os olhos e deixarem à vontade de cada um a abertura de estabelecimentos, a cidade vira um caos! Os moradores poderão ser surpreendidos com uma serraria no terreno vizinho de sua casa, ou uma boate no apartamento ao lado.

Mesmo que não haja alvará, indispensável a inscrição para verificação inicial da localização e a atividade que se pretende exercer. Se a rua for estritamente residencial, conforme a lei de zoneamento ou o plano diretor, a proibir certas atividades, a  inscrição será indeferida e o estabelecimento não vai funcionar, não importa o alcance do grito da liberdade econômica. Essa liberdade não é plena e absoluta. Vem daí o poder de polícia da fiscalização pública. Devemos ter sempre em mente que o poder de polícia administrativo defende o direito da coletividade frente ao direito individual.

Em relação ao horário de funcionamento dos estabelecimentos, não há dúvida de que a matéria é assunto de interesse local, devendo ser regulamentado pela Prefeitura, exceto em casos especiais, como instituições financeiras, cujo horário é ditado pelo Banco Central. Contudo, cobrar taxa para conceder horário especial é condição tão acintosa e grosseira que envergonha. Parece o seguinte: “se você me pagar, eu deixo você funcionar até mais tarde”. A Prefeitura virando máfia ou milícia. Ridículo e escabroso. O empresário tem direito de solicitar horário especial de funcionamento, se for de sua vontade. A autoridade examina a possibilidade do horário especial, observando às consequências desse horário na vida da vizinhança do estabelecimento, cuidando das questões de sossego público, segurança, tráfego e equilíbrio de concorrência. Nada mais do que isso. Aprova ou não, em função do seu poder discricionário. E não para faturar uma taxinha!

E se permitirem mais uma sugestão, aproveitem a oportunidade e instituam as competências de fiscalizar por quadro fiscal, em relação a cada atividade. Exemplo: compete à Vigilância Sanitária fiscalizar Hotéis, Pousadas, Restaurantes, Farmácias, Clínicas, Laboratórios, Hospitais, Consultórios, Escolas, Panificadoras, Supermercados etc. Compete à Fiscalização de Posturas fiscalizar lojas de roupas, de presentes, papelarias, agências de automóveis, imobiliárias, escritórios, agências bancárias etc. Compete à Fiscalização do Meio Ambiente fiscalizar indústrias, serrarias, marcenarias, construção civil etc. Que cada equipe faça a sua parte sem dividir responsabilidades.

E nos casos em que o alvará continuar sendo obrigatório, o processo será examinado e aprovado pelo setor fiscal a qual compete a atividade que o pleitear. Explicando melhor: o Cadastro Central de Atividades Econômicas, local onde são centralizadas as entradas de pedidos de inscrição ou de alvará, abre o processo e o encaminha ao setor fiscal competente para examiná-lo. Aprovado, o processo é devolvido ao Cadastro, onde é emitido um único alvará, o Alvará de Funcionamento da Prefeitura (e não do órgão fiscal).

Quem assina o Alvará de Funcionamento? Seria o Prefeito, mas ele pode delegar competência, por meio de decreto, a outra autoridade municipal, tipo, o Secretário de Finanças, o Diretor ou Chefe do Cadastro, o Diretor da Fiscalização, e por aí vai.

Muitos Municípios já funcionam assim ou até melhor que o sugerido, mas, infelizmente, temos também muitos que ainda não conseguiram espanar a poeira do excesso de ritualismos incongruentes. Uma boa hora para dar uma mexida nos procedimentos.

Referência bibliográfica:
Helly Lopes Meirelles, “Direito Municipal Brasileiro”, Editora Malheiros, SP.