Roberto
A. Tauil - Junho de 2020.
Já faz tempo que os
empresários, diretamente ou através de suas entidades de classe, reclamam da
excessiva burocracia e demora na liberação dos estabelecimentos comerciais, industriais
e de serviços pelos órgãos municipais. Chegam a dizer que, em alguns casos, a
Prefeitura demora mais de um ano para permitir a abertura de suas portas ao
público. E alegam, também, que em muitos Municípios o empresário é obrigado a
obter mais de uma licença (alvará), às vezes até três, uma de cada órgão do
governo municipal, numa alucinante e interminável repetição processual.
Essas reclamações
repercutiram nos ouvidos liberais dos governantes. E daí veio a declaração de
efeito midiático da “Liberdade Econômica”, constituída, inicialmente, de uma
Medida Provisória que visava reduzir a tramitação administrativa e os
empresários pudessem, finalmente, colocar em funcionamento os seus
estabelecimentos, de forma mais rápida, sem excessos burocráticos e receios de
entraves surpreendentes.
A Lei Federal n. 13.874, de
20/09/2019, foi originária da Medida Provisória n. 881, e trata dos
procedimentos dispensados à liberação de estabelecimentos, em âmbito federal,
estadual e municipal. Todavia, o impacto maior se dá exatamente na esfera
municipal, pois compete aos municípios a decisão final de liberar ou não a
abertura de um estabelecimento econômico.
Isso decorre da competência
dos Municípios de exercer a polícia administrativa das atividades urbanas em geral,
para ordenação da vida da cidade, incluindo o zoneamento urbano e o plano
diretor urbanístico. Tal competência se estende a todas as atividades e
estabelecimentos urbanos, desde a sua localização até a instalação e
funcionamento, “não para o controle do exercício profissional e do
rendimento econômico, alheios à alçada municipal, mas para a verificação da
segurança e da higiene do recinto, bem como da própria localização do
empreendimento em relação aos usos permitidos nas normas de zoneamento da cidade”
(Helly Lopes Meirelles, grifado).
O comentário acima do
saudoso Professor Helly Lopes Meirelles nos faz lembrar certas exigências de
alguns Municípios, como a de cobrar taxa de cada contribuinte e não do
estabelecimento. Assim, se um escritório tem três profissionais, o Município
vai ao extremo absurdo de cobrar três taxas de fiscalização, em vez de uma,
pois o estabelecimento é um só. Evidentemente, imposto é uma coisa e taxa é
outra.
Ao analisar o teor da Lei n.
13.874, deve-se enfatizar rigorosamente que as suas normas não se aplicam ao
exercício do direito tributário, conforme acentua o § 3º do art. 1º:
“§ 3º - O
disposto nos arts. 1º, 2º, 3º e 4º desta Lei não se aplica ao direito
tributário e ao direito financeiro, ressalvado o inciso X do caput do art. 3º”.
A dizer, então,
que a Lei n. 13.874 não trata da incidência de tributos sobre o exercício de
atividades dos estabelecimentos. A dizer melhor, a lei federal não tem o poder
de vedar a incidência de taxas sobre o funcionamento e a fiscalização de estabelecimentos.
A própria
Constituição Federal estabelece no seu art. 145:
“Art. 145. A
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os
seguintes tributos: I - impostos; II - taxas, em razão do exercício do poder
de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos
específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;
III - contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas” (grifamos).
Por evidência,
uma lei federal ordinária não tem o poder de suprimir ou alterar uma norma
constitucional.
Dito isso,
afirmamos que as taxas de poder de polícia, decorrente do exercício regular de
fiscalização dos estabelecimentos continuam permitidas, de acordo com a lei de
cada Município. A Lei n. 13.874/2019 cuida especialmente da liberação do Alvará
de Localização e Funcionamento. Nas palavras de Helly Lopes Meirelles, “o
alvará é o instrumento da licença ou da autorização para a prática de ato,
realização de atividade ou exercício de direito dependente de policiamento
administrativo. O alvará expressa o consentimento formal da Administração à
pretensão do administrado, requerida em termos”.
Como se vê,
alvará é instrumento e é liberado na medida em que as exigências da legislação
forem cumpridas. Em outras palavras, o alvará é o documento que atesta e
garante o funcionamento do estabelecimento, por ter sido aprovado pela
Fiscalização.
Neste sentido,
pode-se dizer tranquilamente que NÃO EXISTE TAXA DE ALVARÁ! Pois o alvará não é
vendido! Alvará não se compra com o pagamento de taxa! Seria até
indecente/imoral liberar alvará em razão do pagamento de taxa, ou qualquer
outro tipo de pagamento. Para receber o alvará, o Estabelecimento tem que estar
apto em termos de localização, segurança, asseio, higiene, sossego público
etc., e tudo isso é verificado pela Fiscalização, que tem um custo para exercer
tal função. Portanto, cobra-se taxa, não pela liberação do alvará, mas em
decorrência do exercício regular da fiscalização, do trabalho de vistoria do
estabelecimento e da análise dos documentos apresentados.
Sendo assim,
retornando aos ensinamentos de Helly Lopes Meirelles, o alvará é um bem
patrimonial de seu titular, alienável e transferível a terceiros, juntamente
com o estabelecimento licenciado, pois a este é vinculado e o acompanha em suas
mutações negociais. Assim, se um estabelecimento é vendido, sem alterações em
suas atividades, o alvará continua em vigor, podendo até sofrer alteração da
razão social, mas não perde o seu valor jurídico. Em outras palavras, se o
estabelecimento permanecer igual (mesma atividade), se não houver necessidade
de renovar a vistoria do Corpo de Bombeiros (o que deve ser exigido para
algumas atividades de alto risco), não faz sentido algum obrigar os
contribuintes a renovar o alvará anualmente!
O que se cobra
anualmente é a taxa pelo exercício regular de poder de polícia, desde que haja
realmente um quadro de carreira de servidores fiscais daquela área específica.
Ou seja, Fiscalização de Posturas (e não Tributária); Fiscalização Sanitária
(ou Vigilância Sanitária); Fiscalização do Meio Ambiente. São essas as
fiscalizações de poder de polícia do Município que fiscalizam estabelecimentos.
São também Fiscais de poder de polícia, os de Obras e os de Transporte Público,
mas esses nada têm a ver com fiscalização de Estabelecimentos que exercem
atividades econômicas.
O art. 3º da Lei
n. 13.874/2019 estabelece como direito de toda pessoa, natural ou jurídica,
desenvolver atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha
exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem
a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica
(inciso I do referido artigo).
Observa-se que o
dispositivo acima é restrito às atividades econômicas de baixo risco. Deste
modo, é preciso instituir uma classificação de risco para todas as atividades,
entendendo-se que somente aquelas de baixo risco estariam dispensadas de obter
o alvará para funcionamento. Mas, de que
risco a lei está se referindo? Refere-se ao risco de colocar em perigo o
bem-estar, a saúde e a segurança da coletividade, a lembrar-nos da supremacia
do interesse coletivo sobre o interesse individual.
Neste aspecto, a
Lei n. 13.874/2019 prevê ato do Poder Executivo Federal sobre a classificação
de risco das atividades, que deverá ser observado se não houver legislação
própria estadual, distrital ou municipal específica. E caso não haja ato do
Poder Executivo Federal, será aplicada resolução do CGSIM - Comitê para Gestão
da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas
e Negócios.
Para
simplificar, abaixo a cronologia dos atos:
- Em 30 de abril
de 2019 é publicada a Medida Provisória n. 881;
- Em 11 de junho
de 2019 é publicada a Resolução n. 51 do CGSIM;
- Em 20 de
setembro de 2019, a Medida Provisória n. 881 é convertida na Lei n. 13.874;
- Em 18 de
dezembro de 2019, é publicado o Decreto federal n. 10.178.
Deste modo, a
situação dos Municípios é a seguinte: ou aprova lei própria sobre a
classificação de risco dos estabelecimentos, ou se obriga a adotar o que está
previsto na Resolução n. 51 do CGSIM. Um alerta: o Decreto federal n. 10.178 é
direcionado aos órgãos federais, mas pode ser acolhido subsidiariamente pelos
Estados e Municípios, se esses assim desejarem.
Em tal situação,
o recomendável seria seguir as regras da Resolução n. 51 para os Municípios que
ainda não formularam suas leis. Os Municípios que saíram na frente e já
aprovaram as suas leis estão tranquilos, e não devem se preocupar com algumas
oposições entre as regras federais e as locais, pois vale o que está escrito em
suas próprias leis.
Todavia,
totalmente impossível definir as regras de risco por meio de decreto municipal.
Torna-se indispensável a aprovação de uma lei local, capaz, então, de dispor o
Município de regras próprias que venham a classificar os estabelecimentos nele
instalados por grau de risco.
A lei pode
classificar os estabelecimentos em três níveis de risco:
I - nível de risco I - para
os casos de risco leve, irrelevante ou inexistente;
II - nível de risco II -
para os casos de risco moderado; ou
III - nível de risco III -
para os casos de risco alto.
Cabe mencionar que a
dispensa do alvará não significa dispensa da inscrição municipal. Nenhum
estabelecimento pode abrir suas portas ao público, não importa o risco que
envolva a sua atividade, sem requerer a sua inscrição no cadastro de atividades
econômicas da Prefeitura. Se as autoridades locais fecharem os olhos e deixarem
à vontade de cada um a abertura de estabelecimentos, a cidade vira um caos! Os
moradores poderão ser surpreendidos com uma serraria no terreno vizinho de sua
casa, ou uma boate no apartamento ao lado.
Mesmo que não haja alvará,
indispensável a inscrição para verificação inicial da localização e a atividade
que se pretende exercer. Se a rua for estritamente residencial, conforme a lei
de zoneamento ou o plano diretor, a proibir certas atividades, a inscrição será indeferida e o estabelecimento
não vai funcionar, não importa o alcance do grito da liberdade econômica. Essa
liberdade não é plena e absoluta. Vem daí o poder de polícia da fiscalização
pública. Devemos ter sempre em mente que o poder de polícia administrativo
defende o direito da coletividade frente ao direito individual.
Em relação ao horário de
funcionamento dos estabelecimentos, não há dúvida de que a matéria é assunto de
interesse local, devendo ser regulamentado pela Prefeitura, exceto em casos
especiais, como instituições financeiras, cujo horário é ditado pelo Banco
Central. Contudo, cobrar taxa para conceder horário especial é condição tão
acintosa e grosseira que envergonha. Parece o seguinte: “se você me pagar, eu
deixo você funcionar até mais tarde”. A Prefeitura virando máfia ou milícia. Ridículo
e escabroso. O empresário tem direito de solicitar horário especial de
funcionamento, se for de sua vontade. A autoridade examina a possibilidade do
horário especial, observando às consequências desse horário na vida da
vizinhança do estabelecimento, cuidando das questões de sossego público,
segurança, tráfego e equilíbrio de concorrência. Nada mais do que isso. Aprova
ou não, em função do seu poder discricionário. E não para faturar uma taxinha!
E se permitirem mais uma
sugestão, aproveitem a oportunidade e instituam as competências de fiscalizar
por quadro fiscal, em relação a cada atividade. Exemplo: compete à Vigilância
Sanitária fiscalizar Hotéis, Pousadas, Restaurantes, Farmácias, Clínicas,
Laboratórios, Hospitais, Consultórios, Escolas, Panificadoras, Supermercados
etc. Compete à Fiscalização de Posturas fiscalizar lojas de roupas, de
presentes, papelarias, agências de automóveis, imobiliárias, escritórios,
agências bancárias etc. Compete à Fiscalização do Meio Ambiente fiscalizar
indústrias, serrarias, marcenarias, construção civil etc. Que cada equipe faça
a sua parte sem dividir responsabilidades.
E nos casos em que o alvará
continuar sendo obrigatório, o processo será examinado e aprovado pelo setor
fiscal a qual compete a atividade que o pleitear. Explicando melhor: o Cadastro
Central de Atividades Econômicas, local onde são centralizadas as entradas de
pedidos de inscrição ou de alvará, abre o processo e o encaminha ao setor
fiscal competente para examiná-lo. Aprovado, o processo é devolvido ao
Cadastro, onde é emitido um único alvará, o Alvará de Funcionamento da
Prefeitura (e não do órgão fiscal).
Quem assina o Alvará de
Funcionamento? Seria o Prefeito, mas ele pode delegar competência, por meio de
decreto, a outra autoridade municipal, tipo, o Secretário de Finanças, o
Diretor ou Chefe do Cadastro, o Diretor da Fiscalização, e por aí vai.
Muitos Municípios já
funcionam assim ou até melhor que o sugerido, mas, infelizmente, temos também
muitos que ainda não conseguiram espanar a poeira do excesso de ritualismos
incongruentes. Uma boa hora para dar uma mexida nos procedimentos.
Referência
bibliográfica:
Helly
Lopes Meirelles, “Direito Municipal Brasileiro”, Editora Malheiros, SP.