segunda-feira, 15 de junho de 2020

As novas regras do Alvará de Estabelecimentos


Roberto A. Tauil - Junho de 2020.

Já faz tempo que os empresários, diretamente ou através de suas entidades de classe, reclamam da excessiva burocracia e demora na liberação dos estabelecimentos comerciais, industriais e de serviços pelos órgãos municipais. Chegam a dizer que, em alguns casos, a Prefeitura demora mais de um ano para permitir a abertura de suas portas ao público. E alegam, também, que em muitos Municípios o empresário é obrigado a obter mais de uma licença (alvará), às vezes até três, uma de cada órgão do governo municipal, numa alucinante e interminável repetição processual.

Essas reclamações repercutiram nos ouvidos liberais dos governantes. E daí veio a declaração de efeito midiático da “Liberdade Econômica”, constituída, inicialmente, de uma Medida Provisória que visava reduzir a tramitação administrativa e os empresários pudessem, finalmente, colocar em funcionamento os seus estabelecimentos, de forma mais rápida, sem excessos burocráticos e receios de entraves surpreendentes.

A Lei Federal n. 13.874, de 20/09/2019, foi originária da Medida Provisória n. 881, e trata dos procedimentos dispensados à liberação de estabelecimentos, em âmbito federal, estadual e municipal. Todavia, o impacto maior se dá exatamente na esfera municipal, pois compete aos municípios a decisão final de liberar ou não a abertura de um estabelecimento econômico.

Isso decorre da competência dos Municípios de exercer a polícia administrativa das atividades urbanas em geral, para ordenação da vida da cidade, incluindo o zoneamento urbano e o plano diretor urbanístico. Tal competência se estende a todas as atividades e estabelecimentos urbanos, desde a sua localização até a instalação e funcionamento, “não para o controle do exercício profissional e do rendimento econômico, alheios à alçada municipal, mas para a verificação da segurança e da higiene do recinto, bem como da própria localização do empreendimento em relação aos usos permitidos nas normas de zoneamento da cidade” (Helly Lopes Meirelles, grifado).

O comentário acima do saudoso Professor Helly Lopes Meirelles nos faz lembrar certas exigências de alguns Municípios, como a de cobrar taxa de cada contribuinte e não do estabelecimento. Assim, se um escritório tem três profissionais, o Município vai ao extremo absurdo de cobrar três taxas de fiscalização, em vez de uma, pois o estabelecimento é um só. Evidentemente, imposto é uma coisa e taxa é outra.

Ao analisar o teor da Lei n. 13.874, deve-se enfatizar rigorosamente que as suas normas não se aplicam ao exercício do direito tributário, conforme acentua o § 3º do art. 1º:
“§ 3º - O disposto nos arts. 1º, 2º, 3º e 4º desta Lei não se aplica ao direito tributário e ao direito financeiro, ressalvado o inciso X do caput do art. 3º”.

A dizer, então, que a Lei n. 13.874 não trata da incidência de tributos sobre o exercício de atividades dos estabelecimentos. A dizer melhor, a lei federal não tem o poder de vedar a incidência de taxas sobre o funcionamento e a fiscalização de estabelecimentos.

A própria Constituição Federal estabelece no seu art. 145:

“Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: I - impostos; II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição; III - contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas” (grifamos).

Por evidência, uma lei federal ordinária não tem o poder de suprimir ou alterar uma norma constitucional.

Dito isso, afirmamos que as taxas de poder de polícia, decorrente do exercício regular de fiscalização dos estabelecimentos continuam permitidas, de acordo com a lei de cada Município. A Lei n. 13.874/2019 cuida especialmente da liberação do Alvará de Localização e Funcionamento. Nas palavras de Helly Lopes Meirelles, “o alvará é o instrumento da licença ou da autorização para a prática de ato, realização de atividade ou exercício de direito dependente de policiamento administrativo. O alvará expressa o consentimento formal da Administração à pretensão do administrado, requerida em termos”.

Como se vê, alvará é instrumento e é liberado na medida em que as exigências da legislação forem cumpridas. Em outras palavras, o alvará é o documento que atesta e garante o funcionamento do estabelecimento, por ter sido aprovado pela Fiscalização.

Neste sentido, pode-se dizer tranquilamente que NÃO EXISTE TAXA DE ALVARÁ! Pois o alvará não é vendido! Alvará não se compra com o pagamento de taxa! Seria até indecente/imoral liberar alvará em razão do pagamento de taxa, ou qualquer outro tipo de pagamento. Para receber o alvará, o Estabelecimento tem que estar apto em termos de localização, segurança, asseio, higiene, sossego público etc., e tudo isso é verificado pela Fiscalização, que tem um custo para exercer tal função. Portanto, cobra-se taxa, não pela liberação do alvará, mas em decorrência do exercício regular da fiscalização, do trabalho de vistoria do estabelecimento e da análise dos documentos apresentados.

Sendo assim, retornando aos ensinamentos de Helly Lopes Meirelles, o alvará é um bem patrimonial de seu titular, alienável e transferível a terceiros, juntamente com o estabelecimento licenciado, pois a este é vinculado e o acompanha em suas mutações negociais. Assim, se um estabelecimento é vendido, sem alterações em suas atividades, o alvará continua em vigor, podendo até sofrer alteração da razão social, mas não perde o seu valor jurídico. Em outras palavras, se o estabelecimento permanecer igual (mesma atividade), se não houver necessidade de renovar a vistoria do Corpo de Bombeiros (o que deve ser exigido para algumas atividades de alto risco), não faz sentido algum obrigar os contribuintes a renovar o alvará anualmente!

O que se cobra anualmente é a taxa pelo exercício regular de poder de polícia, desde que haja realmente um quadro de carreira de servidores fiscais daquela área específica. Ou seja, Fiscalização de Posturas (e não Tributária); Fiscalização Sanitária (ou Vigilância Sanitária); Fiscalização do Meio Ambiente. São essas as fiscalizações de poder de polícia do Município que fiscalizam estabelecimentos. São também Fiscais de poder de polícia, os de Obras e os de Transporte Público, mas esses nada têm a ver com fiscalização de Estabelecimentos que exercem atividades econômicas.

O art. 3º da Lei n. 13.874/2019 estabelece como direito de toda pessoa, natural ou jurídica, desenvolver atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica (inciso I do referido artigo).

Observa-se que o dispositivo acima é restrito às atividades econômicas de baixo risco. Deste modo, é preciso instituir uma classificação de risco para todas as atividades, entendendo-se que somente aquelas de baixo risco estariam dispensadas de obter o alvará para funcionamento.  Mas, de que risco a lei está se referindo? Refere-se ao risco de colocar em perigo o bem-estar, a saúde e a segurança da coletividade, a lembrar-nos da supremacia do interesse coletivo sobre o interesse individual.

Neste aspecto, a Lei n. 13.874/2019 prevê ato do Poder Executivo Federal sobre a classificação de risco das atividades, que deverá ser observado se não houver legislação própria estadual, distrital ou municipal específica. E caso não haja ato do Poder Executivo Federal, será aplicada resolução do CGSIM - Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios.

Para simplificar, abaixo a cronologia dos atos:

- Em 30 de abril de 2019 é publicada a Medida Provisória n. 881;
- Em 11 de junho de 2019 é publicada a Resolução n. 51 do CGSIM;
- Em 20 de setembro de 2019, a Medida Provisória n. 881 é convertida na Lei n. 13.874;
- Em 18 de dezembro de 2019, é publicado o Decreto federal n. 10.178.

Deste modo, a situação dos Municípios é a seguinte: ou aprova lei própria sobre a classificação de risco dos estabelecimentos, ou se obriga a adotar o que está previsto na Resolução n. 51 do CGSIM. Um alerta: o Decreto federal n. 10.178 é direcionado aos órgãos federais, mas pode ser acolhido subsidiariamente pelos Estados e Municípios, se esses assim desejarem.

Em tal situação, o recomendável seria seguir as regras da Resolução n. 51 para os Municípios que ainda não formularam suas leis. Os Municípios que saíram na frente e já aprovaram as suas leis estão tranquilos, e não devem se preocupar com algumas oposições entre as regras federais e as locais, pois vale o que está escrito em suas próprias leis.

Todavia, totalmente impossível definir as regras de risco por meio de decreto municipal. Torna-se indispensável a aprovação de uma lei local, capaz, então, de dispor o Município de regras próprias que venham a classificar os estabelecimentos nele instalados por grau de risco.

A lei pode classificar os estabelecimentos em três níveis de risco:
I - nível de risco I - para os casos de risco leve, irrelevante ou inexistente;
II - nível de risco II - para os casos de risco moderado; ou
III - nível de risco III - para os casos de risco alto.

Cabe mencionar que a dispensa do alvará não significa dispensa da inscrição municipal. Nenhum estabelecimento pode abrir suas portas ao público, não importa o risco que envolva a sua atividade, sem requerer a sua inscrição no cadastro de atividades econômicas da Prefeitura. Se as autoridades locais fecharem os olhos e deixarem à vontade de cada um a abertura de estabelecimentos, a cidade vira um caos! Os moradores poderão ser surpreendidos com uma serraria no terreno vizinho de sua casa, ou uma boate no apartamento ao lado.

Mesmo que não haja alvará, indispensável a inscrição para verificação inicial da localização e a atividade que se pretende exercer. Se a rua for estritamente residencial, conforme a lei de zoneamento ou o plano diretor, a proibir certas atividades, a  inscrição será indeferida e o estabelecimento não vai funcionar, não importa o alcance do grito da liberdade econômica. Essa liberdade não é plena e absoluta. Vem daí o poder de polícia da fiscalização pública. Devemos ter sempre em mente que o poder de polícia administrativo defende o direito da coletividade frente ao direito individual.

Em relação ao horário de funcionamento dos estabelecimentos, não há dúvida de que a matéria é assunto de interesse local, devendo ser regulamentado pela Prefeitura, exceto em casos especiais, como instituições financeiras, cujo horário é ditado pelo Banco Central. Contudo, cobrar taxa para conceder horário especial é condição tão acintosa e grosseira que envergonha. Parece o seguinte: “se você me pagar, eu deixo você funcionar até mais tarde”. A Prefeitura virando máfia ou milícia. Ridículo e escabroso. O empresário tem direito de solicitar horário especial de funcionamento, se for de sua vontade. A autoridade examina a possibilidade do horário especial, observando às consequências desse horário na vida da vizinhança do estabelecimento, cuidando das questões de sossego público, segurança, tráfego e equilíbrio de concorrência. Nada mais do que isso. Aprova ou não, em função do seu poder discricionário. E não para faturar uma taxinha!

E se permitirem mais uma sugestão, aproveitem a oportunidade e instituam as competências de fiscalizar por quadro fiscal, em relação a cada atividade. Exemplo: compete à Vigilância Sanitária fiscalizar Hotéis, Pousadas, Restaurantes, Farmácias, Clínicas, Laboratórios, Hospitais, Consultórios, Escolas, Panificadoras, Supermercados etc. Compete à Fiscalização de Posturas fiscalizar lojas de roupas, de presentes, papelarias, agências de automóveis, imobiliárias, escritórios, agências bancárias etc. Compete à Fiscalização do Meio Ambiente fiscalizar indústrias, serrarias, marcenarias, construção civil etc. Que cada equipe faça a sua parte sem dividir responsabilidades.

E nos casos em que o alvará continuar sendo obrigatório, o processo será examinado e aprovado pelo setor fiscal a qual compete a atividade que o pleitear. Explicando melhor: o Cadastro Central de Atividades Econômicas, local onde são centralizadas as entradas de pedidos de inscrição ou de alvará, abre o processo e o encaminha ao setor fiscal competente para examiná-lo. Aprovado, o processo é devolvido ao Cadastro, onde é emitido um único alvará, o Alvará de Funcionamento da Prefeitura (e não do órgão fiscal).

Quem assina o Alvará de Funcionamento? Seria o Prefeito, mas ele pode delegar competência, por meio de decreto, a outra autoridade municipal, tipo, o Secretário de Finanças, o Diretor ou Chefe do Cadastro, o Diretor da Fiscalização, e por aí vai.

Muitos Municípios já funcionam assim ou até melhor que o sugerido, mas, infelizmente, temos também muitos que ainda não conseguiram espanar a poeira do excesso de ritualismos incongruentes. Uma boa hora para dar uma mexida nos procedimentos.

Referência bibliográfica:
Helly Lopes Meirelles, “Direito Municipal Brasileiro”, Editora Malheiros, SP.


quarta-feira, 27 de maio de 2020

Supremo derruba suspensão do ISS e IPTU

Por decisão monocrática do Ministro Dias Toffoli, as cidades de São Paulo, Aracaju, São Luis (MA) e São José do Rio Preto conseguiram derrubar decisões judiciais que autorizavam a suspensão dos pagamentos de impostos municipais durante a pandemia. Os pedidos foram acatados pelo Ministro Dias Toffoli e reforçam a posição que a maioria dos municípios tem adotado durante a crise de manter a cobrança de tributos nos prazos previamente determinados no calendário fiscal.
Das 27 capitais, onze não aprovaram qualquer medida relativa ao IPTU. Treze capitais prorrogaram vencimentos, porém, em alguns casos apenas para o pagamento em cota única. Somente duas, as cidades de Maceió e Porto Alegre, deram descontos significativos ou ampliação do parcelamento regular.
Para o Ministro Toffoli não caberia aos tribunais elaborar uma política pública (como definir prazos de pagamento e conceder descontos), matéria de competência exclusiva do ente federativo. No entendimento do Ministro, as decisões regionais “subverteram completamente” a ordem administrativa quanto ao regime fiscal vigente nos municípios. E as medidas, acrescenta, podem ser potencialmente estendidas a centenas de outras empresas. Ou seja, ele quis dizer que se aprovada a medida para alguns, as demais também vão pedir.
Fonte: Jornal Valor, de 27 de maio de 2020, Jornalista Beatriz Olivon.


Comentário do Consultor: Bom, parece que o STF deu um basta a essa farra de algumas empresas de pedir suspensão de pagamentos tributários, aproveitando-se de forma oportunista da pandemia atual. Do jeito que a coisa estava, a boiada ia passar com a desculpa do coronavírus. Ora, o ISS varia de acordo com o valor faturado. Portanto, se os negócios caem o imposto também cai. E o IPTU é do imóvel, nada tendo a ver com a atividade econômica do seu proprietário.  

terça-feira, 26 de maio de 2020

Incide ITBI quando ocorre a consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário


 Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ENUNCIADO ADMINISTRATIVO N. 3/STJ. ITBI. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL. INADIMPLEMENTO POR PARTE DO DEVEDOR-FIDUCIANTE. CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE PLENA EM NOME DO CREDOR-FIDUCIÁRIO. IMPOSTO SOBRE A TRANSMISSÃO "INTER VIVOS" DE BENS IMÓVEIS E DIREITOS A ELES RELATIVOS - ITBI. INCIDÊNCIA. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO.
1. A hipótese destes autos cinge-se em averiguar se é devido ou não o recolhimento do ITBI por ocasião da consolidação da propriedade do imóvel em nome do credor fiduciário nos casos de inadimplemento pelo devedor fiduciante.
2. Deveras, de acordo com o Código Tributário Nacional, o fato gerador do ITBI ocorre com a transmissão onerosa, a qualquer título, da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis por natureza ou por acessão física, ou, ademais, em face da transmissão onerosa de direitos reais sobre imóveis, exceto os direitos reais de garantia, e, por fim, com a cessão de direitos relativos às transmissões anteriormente mencionadas.
3. A questão jurídica posta neste apelo especial busca examinar a incidência de ITBI na execução do contrato de alienação fiduciária em razão do inadimplemento do devedor-fiduciante e consolidação da garantia real a favor do credor-fiduciante.
4. Deveras, este contrato de direito real se materializa com o registro do contrato fiduciário no Registro de Imóveis competente, cujo teor confere ao credor-fiduciário a propriedade resolúvel do imóvel pactuado, com o exercício da posse indireta desse bem, cabendo ao devedor-fiduciante, por sua vez, a posse direta, exercendo-a através de uma condição negocial resolutória, condicionado ao regular adimplemento das prestações pactuadas com o credor-fiduciário, nos termos do artigo 23 da Lei n.º 9.514/1997.
5. O tratamento tributário quanto à incidência do ITBI no momento de resolução da garantia firmada - como no caso em tela -, merece ser enfrentado. Na hipótese de a dívida oriunda do contrato de alienação fiduciária vir a vencer sem o adimplemento integral ou parcialmente do débito, o devedor fiduciante será intimado a recolher o valor do débito e, caso não haja a regularização desta dívida, a propriedade do imóvel oferecido em garantia será consolidada em favor do credor fiduciário, nos termos do artigo 26, caput, da Lei nº 9.514/1997. Como a hipótese referida ocasiona a desconstituição do contrato real de garantia, de modo a consolidar a propriedade plena do imóvel pactuado ao credor-fiduciário, retornará para este o domínio integral de todos os poderes inerentes ao direito real sobre o bem imóvel (artigo 1.225, inciso I, do Código Civil), caracterizando-se neste ínterim um ato de transmissão, a qualquer título, de um domínio de propriedade, que por igual sentido, acarretará a deflagração da hipótese de incidência do artigo 35, inciso I, do CTN, validando-se outrossim, a determinação contida no artigo 26, § 7º, da Lei n.º 9.514/97.
6. Recurso Especial não provido.
REsp 1844279 / DF - Rel. Min. Mauro Campbell Marques - DJ 05/05/2020.

Comentário do Consultor: Decisão de grande importância para os Municípios. Como se sabe, realizada a compra e venda com garantia da alienação fiduciária, o adquirente/devedor fiduciante efetua o pagamento do ITBI, porque, ao adquirir a propriedade do bem, ocorre o fato gerador do tributo. Porém, o registro em cartório da alienação fiduciária em garantia, que é um direito real do credor, não constitui fato gerador do imposto, como estabelece o inciso II do art. 156 da CF (“... e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia”), pois, caso contrário, seriam duas tributações ao mesmo tempo. Contudo, acaso o devedor fiduciante venha a se tornar inadimplente com suas obrigações de pagar o financiamento do imóvel, haverá a consolidação da propriedade resolúvel em nome do credor. Sobrevém, assim, um novo fato gerador de ITBI, a exigir o seu pagamento no momento do registro da propriedade em nome do credor.
Diz o Relator no seu voto:
A rigor, no fluxo habitual deste negócio jurídico, o credor-fiduciante transmite a posse direta do bem ao devedor-fiduciário, sob condição resolutiva, tendo como garantia a propriedade do imóvel transferido. Nesta fase, não há incidência de ITBI na celebração do contrato de financiamento, pois a propriedade do bem não foi transferida ao devedor-fiduciante, mas tão somente a posse direta. Tal vedação, inclusive, está expressamente disposta no art. 156, II da CF/88, art. 35, II, do CTN e art. 278, II, da Lei Complementar nº 07/1997. Todavia, o tratamento tributário quanto à incidência do ITBI no momento de resolução da garantia firmada – como no caso em tela -, merece outro tratamento. Na hipótese de a dívida oriunda do contrato de alienação fiduciária vir a vencer sem o adimplemento integral ou parcial do débito, o devedor fiduciante será intimado a recolher o valor da dívida e, caso não haja a regularização do pagamento, a propriedade do imóvel oferecido em garantia será consolidada em favor do credor fiduciário (...). Como a hipótese sobredita ocasiona a desconstituição do contrato real de garantia, de modo a consolidar a propriedade plena do imóvel pactuado ao credor-fiduciário, retornará para este o domínio integral de todos os poderes inerentes ao direito real sobre o bem imóvel, inclusive a posse direta do bem (artigo 1.225, inciso I, do Código Civil), caracterizando-se neste ínterim um ato de transmissão, a qualquer título, de um domínio de propriedade, que por igual sentido, acarretará a deflagração da hipótese de incidência do artigo 35, inciso I, do CTN. 

Temos certeza de que muitos Municípios estão deixando de cobrar o imposto em tal situação.

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Gratificação para os servidores da Saúde!

Discute-se a criação de uma gratificação para os servidores que atuam diretamente com os pacientes do novo coronavírus. Como se sabe, algumas categorias de servidores da saúde têm direito à gratificação de insalubridade, cujo valor é calculado com base no vencimento do cargo efetivo. Há também o adicional de insalubridade, tendo o valor de 5% para o grau mínimo, 10% para o grau médio e 20% para o grau máximo.

Insalubridade é o adicional devido ao servidor, que executa habitualmente suas atividades em locais insalubres ou em contato permanente com substâncias tóxicas. São consideradas atividades insalubres aquelas que, por sua natureza ou método de trabalho, exponham o servidor a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social. (de acordo com laudo médico).

E temos também o adicional de periculosidade. Periculosidade é o adicional devido ao servidor que executa habitualmente atividades ou operações perigosas. São consideradas atividades ou operações perigosas; na forma de regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho, aquelas que, por sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem no contato permanente com inflamatórios ou explosivos em condições de risco acentuado.

Ocorre, porém, que o servidor não pode ganhar os dois adicionais. Eles não são cumulativos.

Contudo, na atual situação em que os servidores da saúde estão expostos em flagrante risco de vida, não seria cabível alterar as leis e conceder a esses profissionais os dois adicionais e, inclusive, em alíquotas mais vantajosas? Médicos, Enfermeiros e Atendentes são verdadeiros heróis, colocando suas vidas em risco a cada dia. E pior, colocando em risco a vida de seus familiares, quando retorna às suas casas para descanso.

Em suma: não precisa inventar nenhuma outra gratificação! Basta ajustar a lei da insalubridade e da periculosidade, pelo menos enquanto perdurar essa maldita pandemia. 

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Poder de polícia x liberdades individuais

Existe uma linha tênue que distancia as medidas a favor da coletividade (poder de polícia), em detrimento das liberdades individuais, das medidas que violam os direitos do indivíduo e, por isso, são inconstitucionais. Um exemplo acabou de ocorrer: o Tribunal de Justiça de São Paulo suspendeu os efeitos de decreto do Município de Santo André que proibia temporariamente o transporte público de passageiros maiores de 60 anos. O Desembargador Marrey Ulint disse no seu despacho: “Ao determinar a cassação de direito tão básico, em virtude da declarada pandemia, está-se em verdade, e a princípio, privando os idosos mais vulneráveis de modalidade comum de acesso aos locais e aos serviços que tanto necessitam para sua sobrevivência, em disparidade com todo o restante da população” (...) “Não se está, então, ‘protegendo-os’, ao retirá-los do transporte público, mas sim garantindo que aqueles que possuem recursos possam se locomover de outras maneiras, e aqueles mais pobres não. O critério estabelecido, portanto, passaria a ser econômico, gerando discriminação desproporcional” (AI n. 2062129-12.2020.8.26.000).

Fonte: Informação extraída do Jornal Valor, de 23/04/2020, Sessão Destaques.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Manicômio Fiscal – O ISS

O cidadão comparece no setor de Atendimento da Prefeitura:

- Bom dia, eu quero me inscrever como profissional autônomo.
- Profissional autônomo? Pra quê?
- Ora, sei lá, me disseram que é obrigatório...
- O senhor tem loja?
- Não, eu trabalho em casa, no quintal.
- Gozado... Trabalha no quintal... Pera aí... O JOÃO!!! A GENTE INSCREVE PROFISSIONAL AUTÔNOMO? O senhor aguarda um pouquinho, por favor, ele está vindo, o João entende muito dessas coisas.
(Aparece o João)
- O que foi?
- Este senhor quer se inscrever como profissional autônomo - é aqui mesmo?
- Ah! O senhor está querendo tirar o alvará?
- Não! O contador me disse que preciso me inscrever como profissional autônomo.
- O senhor tem loja?
- Eu já disse a essa senhora que não. Eu trabalho em casa...
- Mas então pra quê o senhor quer se inscrever como profissional autônomo?
- Oh meu Deus, eu sei lá! O contador me mandou... Disse que eu tenho que pagar ISS!
(O João parece que entendeu)
- Ah! Está certo! O ISS! Mas o senhor tem que tirar também o alvará da loja!
- Mas que loja? Eu não tenho loja!
- Se o senhor não tem loja, como vai prestar serviço?
- Meu Deus, eu já disse! Eu trabalho em casa!
(A Atendente está aflita, a fila crescendo...)
- O que nós vamos fazer, João?
- Pera aí, vou falar com o chefe.
(João se retira)
- O senhor pode aguardar aqui ao lado? Eu preciso continuar atendendo a fila.
(O cidadão aguarda. Vinte minutos depois, volta o João)
- O chefe perguntou se o senhor é estabelecido.
- Estabelecido? O que isso quer dizer?
- Bem, se o senhor for estabelecido vai precisar de alvará.
- Ah, estabelecido é quem tem estabelecimento? Pois não tenho estabelecimento! E agora?
- Pera aí, vou dizer ao chefe que o senhor não é estabelecido.
(João se afasta. Quinze minutos depois, retorna)
- O senhor devia ter dito logo que não era estabelecido. O senhor não precisa de alvará, basta se inscrever.
- Mas  é isso que eu estou dizendo desde o início! Como faço para me inscrever?
- O senhor preenche essa ficha de cadastro... Tem caneta? Porque aqui não tem caneta, tinha uma amarrada nesse barbante, mas cortaram o barbante... Levaram a caneta...
- Pode deixar, eu tenho caneta.
(João se afasta e o cidadão preenche a ficha cadastral e entrega à Atendente)
- Eu vou precisar de cópia da carteira de identidade, CPF, comprovante de residência e cópia do registro de sua profissão no Conselho da categoria.
- Eu tenho tudo aqui, menos esse registro no Conselho. Minha profissão não tem Conselho.
- Não tem Conselho? Ora, toda profissão tem... CRC, OAB, CREIA, tem um monte de Conselhos.
- Minha senhora, eu sou Marceneiro e Marceneiro não tem Conselho.
- Gozado... Pera aí... O JOÃO!!! ELE NÃO TEM CONSELHO!! O senhor aguarda um pouquinho, o João entende muito dessas coisas...

segunda-feira, 13 de abril de 2020

O Papagaio

(parodiando Edgar Alan Poe e o seu monumental poema, “O Corvo”)

Era meia-noite e eu tentava ler à luz de velas os curiosos tomos de velhos jornais, quando ouvi um leve bater nos portais. “Um cobrador!”, assustei-me, mas logo se aquietou o temor, “a essa hora da noite um cobrador não cobra mais”.
Ah, bem me lembro! Era em pleno calor de dezembro, eu me ardendo sem ventilador, atormentado com os mosquitos me comendo, e agora aquele bater nos portais. Gritei: “quem pede entrada em meus umbrais?” E o vulto silencioso se adentra, e quando o vejo... Ora, era um papagaio e nada mais.

Era um grave e nobre papagaio, daqueles do tempo dos piratas tradicionais, não fez sequer um cumprimento, mas com ar sereno e lento, pousou imprudente nos castiçais, a derrubar as velas no antigo balaio, e a cera derretida nos velhos jornais.
De susto, fez sorrir a minha amargura, agora completamente às escuras, disse eu, “papagaio abusado, diga-me qual o teu nome lá das trevas infernais” e olhando-me de soslaio, disse o papagaio, “Nunca mais”.

De pronto, entendi: a ave pertencia ao meu vizinho, a quem na vida pouco vi, mas sua fama conhecia - leitor profundo de poesia - somente ele capaz seria, nas palavras e nos sinais, ensinar o papagaio a dizer “nunca mais”.
Sentei-me defronte dele, diante dos castiçais, e, enterrado na cadeira, perguntei-me o que queria esta ave agoureira, que devia estar dormindo nas palmeiras, das florestas que não existem mais.

Fez-se então o ar mais denso, como se fosse ardente incenso, para espantar mosquitos, e eu gritei: “Malditos! Se tivesse o ar ligado, ou o ventilador acionado, vocês seriam enxotados às nuvens celestiais!”. E disse o papagaio, “Nunca mais”. 
Levantei-me irado e gritei aos meus umbrais, “Profeta do agouro, de frase única e persistente, não minta, insolente, a luz retornará de repente, diga louro se a energia não volta mais”. E ele disse, “Nunca mais”.

“Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!”, eu gritei. “Parte! Regressa à tua noite, deixa-me o dia, tamanha luz desejada e jamais racionada em meu casto abrigo. Leva contigo esta dor, de nem ter um sopro de vento a mais!”
“Parte daqui, do mundo dos devedores mortais, pobres inocentes, a quem os anjos chamam de gente, e na terra nem nome temos mais”.  E ele disse, “Nunca mais”.

E o papagaio, na noite infinda, paira por sobre os castiçais. Seu olhar tem a medonha dor de um demônio sem memória; e eu, no aguardo d’uma moratória, pedirei ao cobrador um parcelado, se o CPF não estiver negativado, quem sabe  possível mais um consignado.
E pousado para sempre no busto de Beethoven, aquele que ninguém mais ouve, o papagaio tosquiado, como as velas apagadas no balaio, percebe que nem sombra tenho mais, e que a luz não voltará jamais.

A Operação Corruptio Socialis

Honestíssimo Pontual, magistrado da Comarca de Bicão, dirigiu-se à sede da Polícia Federal e determinou a sua própria e imediata prisão pelo crime de ‘corrupção social’, da forma literal em que confessou o seu crime.
Diante da surpresa do Delegado Federal, o integérrimo juiz promoveu solene explicação: “Senhor Delegado, este servidor público que aqui se faz presente recebeu o contracheque de seus vencimentos relativos ao mês passado, e constatou que o total de rendimentos supera o limite constitucional. Sendo assim, o senhor está diante de um indivíduo que cometeu o crime de corrupção social, usufruindo de forma criminosa dos recursos públicos. Prenda-me, senhor Delegado!”.
O Delegado tentou dissuadi-lo da grave decisão: “Mas, Excelência, se o Tribunal resolveu pagar tal quantia, por certo está cumprindo a lei. Sua Excelência não tem culpa”.
Honestíssimo Pontual teve o rosto ruborizado pela vergonha e irritação: “Senhor Delegado! O senhor está insultando a minha inteligência! Se eu ficar quieto e aproveitar-me de uma lei indecorosa e imoral, serei conivente dessa política mendaz e corrupta. Declaro-me preso, senhor Delegado!”.
E assim, o juiz Honestíssimo Pontual foi conduzido à prisão temporária, por ordem expressa do próprio indiciado.
Contudo, o Delegado necessitava urgente da instauração de inquérito criminal, e para formalizar os procedimentos legais apelou ao Ministério Público. O caso foi parar nas mãos do Promotor Sisudo Rigor Extremo, baluarte das apurações de crimes contra a ordem social.
O doutor Sisudo ouviu atentamente as explanações do aturdido Delegado, o qual relatou a notitia criminis do juiz contra ele próprio. Ao término do relatório, o doutor Sisudo Rigor Extremo retirou do bolso o seu contracheque e alarmado declarou ao Delegado: “Senhor Delegado! Acabo de constatar que eu também cometi o crime de corrupção social! Ganhei mais do que o permitido na Constituição Federal!”.
O Delegado, perplexo, perguntou: “O que faremos, então, doutor Sisudo?”. O Promotor de Justiça não titubeou: “Prenda-me, também!”.

O Promotor Sisudo Rigor Extremo foi fazer companhia ao Juiz Honestíssimo Pontual na prisão. A Polícia Federal instaurou a Operação Corruptio Socialis e vem investigando os vencimentos de todos os servidores públicos. O Delegado Federal afastou-se da Operação por suspeição.