(parodiando
Edgar Alan Poe e o seu monumental poema, “O Corvo”)
Era
meia-noite e eu tentava ler à luz de velas os curiosos tomos de velhos jornais,
quando ouvi um leve bater nos portais. “Um cobrador!”, assustei-me, mas logo se
aquietou o temor, “a essa hora da noite um cobrador não cobra mais”.
Ah, bem me
lembro! Era em pleno calor de dezembro, eu me ardendo sem ventilador, atormentado
com os mosquitos me comendo, e agora aquele bater nos portais. Gritei: “quem
pede entrada em meus umbrais?” E o vulto silencioso se adentra, e quando o vejo...
Ora, era um papagaio e nada mais.
Era um grave
e nobre papagaio, daqueles do tempo dos piratas tradicionais, não fez sequer um
cumprimento, mas com ar sereno e lento, pousou imprudente nos castiçais, a derrubar
as velas no antigo balaio, e a cera derretida nos velhos jornais.
De susto,
fez sorrir a minha amargura, agora completamente às escuras, disse eu,
“papagaio abusado, diga-me qual o teu nome lá das trevas infernais” e
olhando-me de soslaio, disse o papagaio, “Nunca mais”.
De pronto,
entendi: a ave pertencia ao meu vizinho, a quem na vida pouco vi, mas sua fama conhecia
- leitor profundo de poesia - somente ele capaz seria, nas palavras e nos
sinais, ensinar o papagaio a dizer “nunca mais”.
Sentei-me
defronte dele, diante dos castiçais, e, enterrado na cadeira, perguntei-me o
que queria esta ave agoureira, que devia estar dormindo nas palmeiras, das
florestas que não existem mais.
Fez-se
então o ar mais denso, como se fosse ardente incenso, para espantar mosquitos,
e eu gritei: “Malditos! Se tivesse o ar ligado, ou o ventilador acionado, vocês
seriam enxotados às nuvens celestiais!”. E disse o papagaio, “Nunca mais”.
Levantei-me
irado e gritei aos meus umbrais, “Profeta do agouro, de frase única e
persistente, não minta, insolente, a luz retornará de repente, diga louro se a
energia não volta mais”. E ele disse, “Nunca mais”.
“Que esse
grito nos aparte, ave ou diabo!”, eu gritei. “Parte! Regressa à tua noite,
deixa-me o dia, tamanha luz desejada e jamais racionada em meu casto abrigo.
Leva contigo esta dor, de nem ter um sopro de vento a mais!”
“Parte daqui,
do mundo dos devedores mortais, pobres inocentes, a quem os anjos chamam de
gente, e na terra nem nome temos mais”.
E ele disse, “Nunca mais”.
E o
papagaio, na noite infinda, paira por sobre os castiçais. Seu olhar tem a
medonha dor de um demônio sem memória; e eu, no aguardo d’uma moratória, pedirei
ao cobrador um parcelado, se o CPF não estiver negativado, quem sabe possível mais um consignado.
E pousado para
sempre no busto de Beethoven, aquele que ninguém mais ouve, o papagaio
tosquiado, como as velas apagadas no balaio, percebe que nem sombra tenho mais,
e que a luz não voltará jamais.
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