segunda-feira, 13 de abril de 2020

O Papagaio

(parodiando Edgar Alan Poe e o seu monumental poema, “O Corvo”)

Era meia-noite e eu tentava ler à luz de velas os curiosos tomos de velhos jornais, quando ouvi um leve bater nos portais. “Um cobrador!”, assustei-me, mas logo se aquietou o temor, “a essa hora da noite um cobrador não cobra mais”.
Ah, bem me lembro! Era em pleno calor de dezembro, eu me ardendo sem ventilador, atormentado com os mosquitos me comendo, e agora aquele bater nos portais. Gritei: “quem pede entrada em meus umbrais?” E o vulto silencioso se adentra, e quando o vejo... Ora, era um papagaio e nada mais.

Era um grave e nobre papagaio, daqueles do tempo dos piratas tradicionais, não fez sequer um cumprimento, mas com ar sereno e lento, pousou imprudente nos castiçais, a derrubar as velas no antigo balaio, e a cera derretida nos velhos jornais.
De susto, fez sorrir a minha amargura, agora completamente às escuras, disse eu, “papagaio abusado, diga-me qual o teu nome lá das trevas infernais” e olhando-me de soslaio, disse o papagaio, “Nunca mais”.

De pronto, entendi: a ave pertencia ao meu vizinho, a quem na vida pouco vi, mas sua fama conhecia - leitor profundo de poesia - somente ele capaz seria, nas palavras e nos sinais, ensinar o papagaio a dizer “nunca mais”.
Sentei-me defronte dele, diante dos castiçais, e, enterrado na cadeira, perguntei-me o que queria esta ave agoureira, que devia estar dormindo nas palmeiras, das florestas que não existem mais.

Fez-se então o ar mais denso, como se fosse ardente incenso, para espantar mosquitos, e eu gritei: “Malditos! Se tivesse o ar ligado, ou o ventilador acionado, vocês seriam enxotados às nuvens celestiais!”. E disse o papagaio, “Nunca mais”. 
Levantei-me irado e gritei aos meus umbrais, “Profeta do agouro, de frase única e persistente, não minta, insolente, a luz retornará de repente, diga louro se a energia não volta mais”. E ele disse, “Nunca mais”.

“Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!”, eu gritei. “Parte! Regressa à tua noite, deixa-me o dia, tamanha luz desejada e jamais racionada em meu casto abrigo. Leva contigo esta dor, de nem ter um sopro de vento a mais!”
“Parte daqui, do mundo dos devedores mortais, pobres inocentes, a quem os anjos chamam de gente, e na terra nem nome temos mais”.  E ele disse, “Nunca mais”.

E o papagaio, na noite infinda, paira por sobre os castiçais. Seu olhar tem a medonha dor de um demônio sem memória; e eu, no aguardo d’uma moratória, pedirei ao cobrador um parcelado, se o CPF não estiver negativado, quem sabe  possível mais um consignado.
E pousado para sempre no busto de Beethoven, aquele que ninguém mais ouve, o papagaio tosquiado, como as velas apagadas no balaio, percebe que nem sombra tenho mais, e que a luz não voltará jamais.

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