Acordo, vou ao banheiro e olho-me
no espelho. Um rosto coberto pela neblina do tempo (genial, Simenon!). Essas
papadas debaixo dos olhos... O idiota do médico oculista me diz para fazer
plástica; corta aqui, corta ali, e as papadas desaparecem. Eu fazer plástica!
Argh! Meu pai se sacudiria no caixão e faria tremer todo o cemitério! Meu pai
não lavava as mãos com sabonete. Mãos de trabalhador têm que ser calosas, ele
dizia. Mãos sedosas, lavadas com sabonete, é coisa de mulher, que devem ser
lindas, cheirosas, de mãos macias, ele dizia. Se dissesse isso hoje seria
chamado de machista.
Deixarei esses calombos debaixo
dos olhos. Por que me importo com isso? Será que estou ficando vaidoso depois
de velho? A vaidade é tolice dos néscios. Disfarço tais pensamentos ligando o
rádio e ouvindo a CBN. O locutor informa que o trânsito está péssimo, tudo
engarrafado. Preocupo-me, vou chegar atrasado, mas aí me lembro de que não vou a
lugar nenhum, vou ficar em casa. Então, por que me preocupar? Realmente, estou
velho, muito velho, preocupo-me à toa, não penso coisa com coisa. E essas
papadas...
Visto-me e vou
à padaria. Dona Pequenininha me diz que o pão está fresco. Respondo que quero
pão macho, não quero pão fresco. Piada velha a brotar risos e gargalhadas. O
pessoal da padaria me acha simpático. Um velho gozado. Um coroa. “Sabe aquele
coroa engraçado? Aquele que usa uma boina esquisita? Morreu!” Penso isso quando
bebo o cafezinho. Diz a moça do caixa: “Pudera! Fumava muito!”. Posso chegar
aos cem anos, mas quando morrer o culpado foi o cigarro. “Coitado, fumava
muito”.
Todo cumprimento de velho já é
uma forma de despedida. “Bom dia”, e a pessoa entende: “quem sabe seja esse o meu
último dia”. O que me conforta é que serei considerado uma ótima pessoa, mas depois
de morta. Todos dirão: “era uma excelente pessoa”, “um bom amigo”, “deixará
grandes saudades”. Por enquanto, ainda vivo, devo ser uma péssima pessoa, um
mau amigo, e tanto esquecido aqui no meu canto. Não estou me queixando, apenas
constato uma realidade, pois faço exatamente a mesma coisa com os outros.
Não chego a ser um misantropo,
mas sou um casmurro rabugento. Não sou de babar netos e netinhos. Prefiro
dar-lhes liberdade de escolher de quem gostam, naturalmente, sem provocações.
Deixo-os à vontade. Se me procuram eu os recebo carinhosamente. Se não me
procuram, eu respeito suas escolhas e não fico roendo as unhas. Os filhos,
trato-os como adultos. Se eles pedem um conselho, e se eu souber aconselhar
sobre o assunto, eu dou a minha opinião. Se não pedem, eu me calo e ouço.
Tenho um casamento esplêndido! De
respeito mútuo e profunda amizade, o que costumam chamar amor. Na minha atual
idade, amor não é aquela paixão de gente nova. Amizade sedimentada, de
companheirismo, daquele tipo de entender os olhares. Só não gosto quando ela
mexe no meu computador...
Coisas de velho. Está tudo bem, menos essas papadas debaixo dos olhos. Não farei plástica, de jeito nenhum! Talvez umas massagens, um creme milagroso...
Coisas de velho. Está tudo bem, menos essas papadas debaixo dos olhos. Não farei plástica, de jeito nenhum! Talvez umas massagens, um creme milagroso...
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