quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Essa tal de obrigação acessória

O que eu mais gosto no meu trabalho é a falta de rotina, a diversidade de assuntos, os múltiplos contatos. Acontece, porém, que às vezes surge um caso a induzir-me a pensar em parar tudo que faço, e refugiar-me no ‘bunker’ da minha casa, onde as paredes grossas impedem até a invasão das ondas interneteiras.

Um desses fatos surgiu recentemente. Uma singela associação cristã comunitária, pessoa jurídica de capital constituído de R$1.000,00, cujo objetivo é ajudar as famílias carentes do local, foi autuada pela Prefeitura por não ter emitido uma tal de Declaração de Encerramento Fiscal, conforme exige a legislação municipal. Resultado: uma multa de R$32.000,00!

O Fiscal foi logo me dizendo: “descumprimento da obrigação acessória”. E perguntei: “acessória de quê?”. O Fiscal ficou desconfiado, pois ele sabe que eu não sou tão idiota assim. “Ora, acessória da obrigação principal”, respondeu sem muita convicção. Estávamos conversando no pátio da Prefeitura, o meu fumódromo. Dei uma tragada e perguntei: “essa associação paga imposto?”. Ele respondeu: “não, porque é imune, mas a obrigação acessória é para todos!”. Ali, sentado na mureta, fiquei olhando o jardim do Paço Municipal, coberto com as florezinhas amarelas do amendoim. Voltei à realidade: “E a entidade presta serviços?”, perguntei. O Fiscal titubeou e não soube responder.

Pois é, a pequena associação não presta serviços; ela realiza serviços para os necessitados; ela ajuda as pessoas, fornece roupas e mantimentos e ainda dispõe de uma creche gratuita para as crianças da comunidade. Vive de doações. E assim, pergunto: por que exigir o cumprimento de deveres instrumentais a quem não se obriga à obrigação principal?

Bom lembrar de que as chamadas obrigações acessórias têm serventia no interesse da arrecadação ou da fiscalização de tributos. É o que diz o § 2º do art. 113 do CTN. Se a associação não é contribuinte do ISS, por que exigir o cumprimento burocrático das obrigação acessórias?

Perguntei ao Fiscal: “você visitou essa instituição?”. Respondeu que não. Levantei-me e disse a ele: “pega o carro e vamos até lá”. A proposta não agradou, mas concordou. E era exatamente o que eu pensava: uma casinha humilde, mas limpa e arrumada, onde crianças brincavam sob os cuidados de zelosas senhoras, todas voluntárias da instituição.

Transformar obrigação acessória em receita fiscal, cá entre nós, já é um absurdo. Sair multando todo mundo, sem ter o mínimo cuidado de conhecer melhor os autuados, aí já considero uma aberração fiscal, ou, como os romanos falavam, aberratio ictus!

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