sábado, 3 de setembro de 2016

O Sursis

O ar condicionado funcionava no máximo, mas, mesmo assim, a sala do magistrado estava abafada e o ambiente tenso. O Promotor não conseguia ficar sentado, levantando-se a todo o momento com o dedo em riste a apontar o magistrado.

- Excelência! O crime está provado! Já foi julgado! A ré condenada! Como conceder sursis?

Mas o Advogado de defesa não perdia a calma. Sentado, de pernas cruzadas, até esboçava um sorriso irônico. Respondeu no lugar do magistrado:

- Meu caro Promotor, a ré não é reincidente, examine os seus antecedentes...

O Promotor nervoso:

- Não é reincidente? Matou três! Os jornais a chamam de A Ciclista Serial Killer!

O magistrado passava a mão pelos ralos cabelos.

- Calma, Promotor! Vamos ouvir a tese da defesa.

O advogado de pernas cruzadas e curvado a endireitar a meia da perna dobrada, explicou meio sonolento.

- Obrigado, Excelência. De fato, ela foi considerada culpada nos três crimes, mas, observem por favor, os crimes foram iguais, repetitivos, todos decorrentes de surtos psicóticos perfeitamente justificáveis. Examinem o seu passado! Foi torturada, foi perseguida!

O Promotor de pé.

- E isso lhe dá o direito de matar três?

- Ora, Promotor, o senhor sabe que os tais crimes foram acidentes de percurso, meros atropelamentos, ou pedaladas inconsequentes se o senhor quiser...

- Meros atropelamentos? Ela pedalou em cima das vítimas!

- Bem, não vou discutir o que já está julgado. Ela perdeu, nós perdemos, paciência, mas seria uma grande injustiça imputar-lhe uma pena pesada. E esse negócio de Ciclista Serial Killer é coisa da imprensa sensacionalista.

- Quer dizer que vamos deixá-la em liberdade para que mate mais gente?

- Eu já disse que ela surtou. Ela tem realmente esse problema, mas não é sua culpa.

- E essa mania de exigir que todos a chamem de presidenta? Ela é egocêntrica e perturbada mental! Se não vai para a cadeia, então que vá para o Hospício!

O magistrado intervém:

- Calma, Promotor! Não exagere e modere os termos! Temos que analisar juridicamente o problema, e... Espera um pouco, onde está o papel, doutor?

E o Advogado passa um papel para o juiz.

 Ah, obrigado, me deixa ler aqui, considerando que a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias do fato permitem a concessão do benefício, eu vou decidir pelo sursis.

O Promotor protestou:

- Senhor Juiz! Isso é uma aberração jurídica!

O juiz bateu com as mãos na mesa.

- Pode ser uma aberração, mas não maior que o berreiro da turma da ré nos meus ouvidos. Assim eu decido!

- E qual foi ser o sursis?, perguntou o Promotor.

- Crime sem pena! Aliás, eu prefiro Dostoievski, “Crime sem Castigo”. Acho melhor que “Crime e Castigo”.
O Advogado sorridente:

- Gosto muito de Dostoievski. O senhor já leu “Humilhados e Ofendidos”?
E o tema passou a ser Dostoievski. Como o Promotor nunca tivera tempo de ler as obras do escritor russo, pegou a sua pasta, pediu licença, e saiu de fininho. 

Um comentário:

  1. Foi a melhor opção do Promotor, já que o mesmo era de temperamento irascível!

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