quarta-feira, 21 de setembro de 2016

O interrogatório final

Cá estão eles, os meninos bem vestidos. Terno cinza Ermenegildo Zegna, sapato Ferragamo, por certo tudo comprado a prazo ou no cartão de crédito, para compor este momento, o momento crucial de suas vidas. Eles vão me interrogar! E todos com aquela aparente ausência de envolvimento emocional, a induzir o acusado a acreditar na integridade dos inquisidores. Quem engana? Eu os conheço bem!

São meninos! Comportados, eles seguem o manual de interrogatório do FBI, o velho processo dos nove passos. Inicia-se com a pergunta acusatória ofensiva; depois, a atenuação; outra acusação; a solidariedade; nova investida; o apaziguamento; a busca da conciliação; por aí vai... Coitados... Se sentem mestres no ofício, porque leram um livro. Pois eu nunca li um livro na minha vida, mas já sei de cabeça todo o desenrolar do manual de interrogatório, a mim imposto desde o tempo da ditadura. Meninos: não será fácil, vocês vão sofrer comigo!

Não existe nada mais barulhento que o mutismo total! O silêncio brutal e ofensivo de quem é vítima do esperneio dos acusadores. Acusam-me e eu me calo! Agrido-lhes com a fúria do meu silêncio! Estão perplexos!

Enquanto eles perguntam, eu me devaneio em pensamentos. A verdade (que eles não precisam saber) é que sempre vivi impune! Meus crimes (sei agora que eram crimes) me galgaram à galeria dos deuses! Eu não andava; eu flutuava sobre os subservientes. Eles me idolatravam, e eu, mais ainda, me adorava! Ah, como fui apaixonado por mim! Eu passava e via os olhos arregalados me admirando. Eu era o show, o mundo a plateia. E agora, esses meninos me impingem o surrado manual do FBI. É ridículo e injusto!

Perguntam agora sobre propinas... E eu calado a olhar para o teto. Propinas... Eles não sabem algumas verdades: nunca em minha vida pedi propina! Nunca! Mas, por motivos de educação, nunca recusei as ofertas. São coisas diferentes.

Perguntam sobre minhas ambições... Desejos? Sim, sempre tive um desejo, um desejo bem guardado, nunca confessado e não será agora o momento de contá-lo. Eles não sabem que, em vez de uma faixa peitoril, sempre quis uma coroa. Uma coroa cintilante, cravejada de pedras preciosas, pousada mansamente em minha cabeça. Se um dos subalternos do meu tempo de mandante tivesse tido um lampejo de inteligência, e mesmo que insinuasse sutilmente que eu merecia uma coroa, ah, eu faria aquela ideia vingar, faria uma algazarra até ganhar contornos jurídicos (para isso servem os bajuladores advocatícios), até concretizar-se em cerimônia episcopal. Eu seria coroado! Este sempre foi meu único desejo, mas as formigas humanas se alastravam aos meus pés e não percebiam o que eu mais gostaria de ter.

E cá estão os meninos! Nervosos! Desesperam-se diante do meu radical silêncio. Claro que não vão propor delação premiada se eu já sou o píncaro dos delatados. E eu que gosto tanto de falar... Mas aqui não é o lugar, não sou besta. Ah, como seria bom agora um tragozinho da Havana. A Germana resolvia... Uma cigarrilha... Eles pensam que estou com medo, esse bando de fedelhos! Aposto que nunca chegaram ao nono passo do interrogatório do FBI. Esse passo dói, e muito! Eles não têm peito de aplicá-lo! A turma da ditadura tinha, eu sei. 

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