terça-feira, 18 de junho de 2013

Dia de fúria na comunidade

A vida seguia tranquila, mas eu pressentia algo no ar. Todos ordeiros, a comprar o seu pão, a passear na praia, a ler os jornais na banca, compras no mercadinho, Índio das Verduras a pedalar o seu triciclo, Chinelinho a desentupir caixas de gordura, tudo em ordem, ou melhor, tudo ordenado e sem perspectivas de progresso. Havia no ar uma brisa de tensão que eu sentia até nos bons dias e como vai do pessoal. Uma espécie de ressentimento ou inconformismo com o andar das coisas.

A vida política na comunidade é centralizada em alguns. Daniel, o jornaleiro, é oposição, mas vive do agrado do seu Manuel, o dono da padaria, que cede espaço para instalação da banca. Seu Manuel é o líder político da situação e sabe controlar a oposição abrindo a torneira das dádivas aos oposicionistas nos momentos propícios, quando a pressão aumenta. Quando Daniel começa a reclamar muito (preço do pão, do cafezinho, da dose de cachaça), a torneirinha se abre e Daniel ganha alguma coisa e se cala. E tudo continua na mesma, pois sem a gritaria da oposição a comunidade não se alardeia.

Daniel, o opositor, na verdade sempre fez oposição para fins de benefício próprio, todo mundo sabe disso, mas ninguém comenta. Há, também, o Henheco, o eletricista, este um radical opositor, um extremista, como dizem, adversário do seu Manuel e do próprio Daniel, a espernear contra as injustiças tidas e havidas na comunidade, mas suas palavras vão ao vento, recebidas com deboche e desdém pelas classes dominantes. Alguns ouviam as palavras de Henheco, matutavam sobre o assunto e, diante das reprovações das lideranças, ficavam quietos, afinal, essas coisas de política são complicadas e quem sou eu para discordar se esses políticos são tão queridos e com alto grau de aprovação popular. Contudo, de qualquer forma, ficavam pensando no que ouviram.

O estopim da confusão foi o aumento de vinte centavos no quilo do pão. Daniel, que aspirava ampliar o seu espaço para vender cigarro na banca, em frontal concorrência com a padaria do seu Manuel, pisou fundo na reclamação e todos ouviam e concordavam. Seu Manuel chamou Daniel para conferenciar e tudo se acalmou, a banca de jornal venderia os seus cigarros e o aumento do pão se justificava com o aumento da farinha de trigo, seu Manuel não tinha culpa, problema do mercado global do trigo, todo mundo sabe disso.

Dona Margarida foi comprar pão e não tinha dinheiro suficiente, faltavam os vinte centavos, ficou sem pão e saiu desiludida da padaria. Seu Broa, que estava na fila do pão, e amigo de Dona Margarida, não se conformou e ofendeu o seu Manuel. Seu Manuel respondeu com palavras de baixo calão. Tristão, pescador, não gostou e chamou seu Manuel para briga. A turma do deixa disso interveio e cada um foi para o seu lado.

De tarde, uma turma se reuniu em frente da padaria. Alguns gritavam, alguns pegaram pedras. A primeira pedra lançada desencadeou o conflito. O grupo apedrejou a padaria, a banca de jornal do Daniel, o Mercadinho, até o triciclo do Índio das Verduras. A turma seguiu pelas ruas quebrando tudo que podia ser quebrado, veio a polícia e foi alvejada também, porque todos a considerava a representação material de um poder estabelecido, ora escondido e que não dava as caras.

No dia seguinte, seu Manuel jogou a culpa do conflito no Daniel; Daniel jogou a culpa no Henheco. Henheco não jogou a culpa em ninguém, porque estava em local ignorado e não sabido. Ficamos sem eletricista.

Um comentário: