Logarino chega
afobado na repartição, já soltando a mochila dos ombros. “O chefe já chegou?”,
pergunta ao Ezequiel que lia o jornal quase deitado na cadeira e com os pés em
cima da mesa. “Que pergunta! Você sabe que o chefe é sempre o primeiro a
chegar”. E abaixa o jornal para dar uma olhada no colega e dizer: “E ele já
perguntou por você”. “Que droga”, desabafa Logarino ao largar sua mochila na
mesa e se dirigir à sala do chefe.
Lá estava o
chefe, com a mesa abarrotada de processos. Logarino deu uma batidinha na porta entreaberta
e entrou. “Desculpe pelo atraso, chefe, mas o trânsito está caótico, uma
confusão danada”. O chefe, que despachava um processo, levanta os olhos e dá
uma risadinha. “Eu sei, eu sei, eu só queria falar com você da sua promoção”.
Logarino se surpreendeu: “Promoção? Eu fui promovido?”. O chefe joga a caneta
esferográfica na mesa. “O Tertuliano abandonou o barco; sumiu, escafedeu-se!
Você vai ficar no lugar dele!”. Logarino deu um suspiro. “Tertuliano também?
Está todo mundo indo embora”. O chefe levantou-se e esticou as costas
espreguiçando-se. “Pois é, essa conversa de que o mundo vai acabar está mexendo
com os nervos de todo mundo”. Logarino senta numa das cadeiras sujas e
corroídas pelo tempo de uso. “E não poderia ser de outra forma, todos sabendo
do fim próximo”. O chefe dá um grito. “Próximo? Ainda falta um ano para que
este maldito raio solar nos atinja!”. Logarino nega com a cabeça. “Um ano não!
Onze meses e vinte dias, e contando”. O chefe levanta os braços. “Ora, a mesma
coisa! Ainda falta muito tempo e os idiotas estão fugindo ou se matando. Você
sabia que a imbecil da minha mulher me deixou e foi para a casa da mãe, lá em Anapolina?”.
Logarino fica constrangido. “Puxa, chefe, lamento muito, eu não sabia”. O chefe
volta a se sentar. “Pois é, a burra pensa que a tragédia não vai atingir
Anapolina”.
Logarino volta
ao salão e Ezequiel continua lendo o jornal e fumando descaradamente em plena
repartição. “Ezequiel, você sabe que é proibido fumar em recinto fechado”.
Ezequiel dá uma gargalhada. “Cara, você é o único que ainda se importa com o
cumprimento das leis”. E dobra a página do jornal resmungando. “Que se danem as
leis! Está tudo acabado mesmo”.
Logarino senta
na sua cadeira e pega um processo. “O chefe mandou continuar as fiscalizações”.
Ezequiel joga o jornal no chão. “O quê? Continuar as fiscalizações? Pra quê?
Ninguém paga mais nada! Em que mundo ele está vivendo?”. Logarino continua
lendo um processo. “Ele disse que ainda temos muito tempo antes de o mundo
acabar”. Ezequiel levanta e se aproxima da mesa do outro. “Cara, nós não temos
um ano de vida e ele insiste em continuar trabalhando?”. Logarino empurrou o
processo de lado. “Entendo o que você diz, mas o chefe acha que tanto faz viver
mais um ano ou viver mais cinquenta, no fim é tudo a mesma coisa”. Ezequiel
contesta: “Não é a mesma coisa não! Quando temos uma data marcada para morrer é
bem diferente”.
O chefe entra
no salão dos fiscais. O salão tem vinte mesas, mas, agora, só duas são
ocupadas, por Ezequiel e Logarino. Os outros fiscais abandonaram o trabalho,
por fuga ou suicídio. O chefe entra esfregando as mãos. “Vamos lá gente, temos
muito trabalho para fazer. Ezequiel, quero que você vá até a empresa Monstro da
Informática e a intime para entregar a documentação. E você, Logarino, autue
aquela escola de ricos, a Bronx School, que ainda não pagou o IPTU”. Ezequiel
olha para o chefe como estivesse olhando um extraterrestre. “Chefe, a Monstro
Informática já fechou as portas, os funcionários foram mandados embora, o
presidente pulou do sexto andar do prédio”. O chefe não se dá por vencido. “Então,
despache no processo, arbitra o imposto e manda pra Procuradoria executar o
débito”. Ezequiel dá um sorriso de desdém. “Procuradoria? Não tem mais ninguém
lá, chefe. O Procurador-Geral vestiu-se de mulher e foi fazer trottoir na
Cinelândia. Ele disse que finalmente teve coragem de sair do armário”. Logarino
aproveitou a deixa. “Chefe, com todo o respeito, ninguém paga mais nada, é a
crise da véspera do fim do mundo. Nada funciona mais, os serviços públicos
foram extintos, os vândalos estão quebrando tudo nas ruas, as igrejas estão
repletas...”. O chefe, impaciente, interrompe. “Logarino! Nós somos servidores
públicos! Temos um trabalho a fazer! Enquanto a merda deste mundo não acabar,
vamos continuar o nosso trabalho!”. E abrindo um largo sorriso gritou para os
dois. “E vamos em frente que atrás vem gente!”.
Mesmo sabendo
que atrás não vinha ninguém, eles foram trabalhar.
Nota: Essa
historieta é a minha singela homenagem ao premiado escritor americano Ben H.
Winters, autor de “O último policial”, um conto futurista que narra as
aventuras de um policial nas vésperas de um irreversível cataclismo.
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