Neste sábado, como de costume, saí de casa, com a boca ainda com gosto de hortelã, para comprar o pão de cada dia, mas sem antes dar uma passada na banca de jornais do Daniel. A turma estava lá, inclusive Pezinho com a sua bengala. Um dos pés de Pezinho é atrofiado e, por isso, o Daniel sempre cede a ele um banquinho para sentar. O apelido vem do tempo de criança, e as crianças são genuinamente perversas ao inventar apelidos para as outras. A alcunha pegou e ninguém conhece o verdadeiro nome dele.
Pezinho tem um costume que chega
a me irritar: só fala em futebol.
A conversa girava em torno dos
preços das coisas e a turma estava revoltada. “Setenta centavos um pão! Isso é
um absurdo!”, gritava dona BPereira, segurando a barriga enorme. “Esse seu
Manel é um ladrão!”, sentenciou Índio das Verduras. Chinelinho, com aquela voz
estridente, apontou o Índio: “Você não pode falar não! Sete reais o quilo do
tomate! Você também é ladrão!”. A antiga rivalidade entre os dois permanece.
Índio das Verduras se defendeu: “Vai ver quanto custa no Ceasa! Está tudo
aumentando!”.
Henheco, o eletricista
esquerdista, aproveitou a brecha: “A burguesia é toda ladrona! Está todo mundo
roubando o povo!”. Resolvi me intrometer (eu sou um burro falador, por que não
fico quieto, meu Deus!): “Gente! É a crise! A inflação voltou!”. A dona Zica da
Tainha, sempre preocupada, perguntou: “Doutor, será que vão acabar com a Bolsa
Família?”. Henheco atropelou a minha resposta: “É claro, dona Zica! Este é o
plano: inventa essa inflação e acaba com a Bolsa Família!”. Dona Zica,
preocupada, nem se importou com a resposta do Henheco, continuou olhando para
mim esperando a resposta. “Bem, dona Zica, apesar da inflação, eu não acredito
que a Bolsa Família vai acabar. Talvez, o seu valor não acompanhe a inflação,
isso pode até acontecer...”. “Estão vendo!”, gritou Henheco, “Os preços
aumentam e a Bolsa Família não vai dar pra nada!”.
Pezinho, com a sua voz rouca,
interveio: “Vocês estão vendo o salário dos jogadores? Cada vez aumenta mais! O
Flamengo paga mais de um milhão pra esse tal de Guerreiro!”. Daniel se
intromete: “A maior parte vai pro bolso do empresário! É tudo ladrão!”.
Estava presente o Bill, que
exerce funções de vigia. Bill está sempre vestindo uma calça de moletom, um par
surrado de tênis e sem camisa. Ele gosta de mostrar os seus músculos já em
frangalhos. “Meu patrão está reclamando: aumentou a conta de luz, o gás, a
água...”. Chinelinho sacudiu os ombros: “Nós não pagamos essas coisas, somos
isentos”. O Índio das Verduras protestou: “Não é bem assim! O Henheco está
cobrando vinte paus pra fazer um gato!”. Henheco ficou mais vermelho do que o normal:
“O meu preço é justo! Quem leva choque sou eu!”.
Pezinho resumiu: “É tudo ladrão!
Até juiz é ladrão!”. Todo mundo olhou pra ele. Pezinho explicou: “Vocês
assistiram o último jogo do Flamengo? Um pênalti claro como aquele, todo mundo
viu, só o juiz fingiu que não viu!”. Daniel concordou: “É verdade, até juiz é
ladrão”.
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