quarta-feira, 30 de outubro de 2013

A Tabela da Moralidade

O Chefe do Departamento de Pessoal entra na sala do Secretário:
- Senhor Secretário, dá licença; preciso conversar com o senhor sobre um assunto grave.
- Entra! O que aconteceu?
- Tenho recebido várias denúncias de corrupção praticada por servidores. Dizem que já existe até uma tabela de propinas.
- Isso é grave! Você já viu esta tabela?
- Não senhor, mas dizem que há uma tabela de taxa de urgência. Se o processo for encaminhado no mesmo dia o interessado paga dez reais. Se for aprovado no mesmo dia, o interessado paga cem reais.
- Dez reais? Ora, isso não é propina, é uma gorjeta.
- Bem, não seria a mesma coisa?
- Claro que não! Propina é coisa grande, um gorjetão. Uma pequena gratificação é uma gorjetinha.
- Mas as duas não são imorais?
- Imorais? Realmente, esta é uma questão interessante... Como definir o que é moral ou imoral...
- Acho que receber propina, ou gorjeta como o senhor disse, é um ato imoral, não importa o valor.
- Nem tanto, meu caro. Cada pessoa tem um conceito próprio de moralidade. Se você encontra no chão de uma padaria uma moeda de um real, você entrega no caixa do estabelecimento?
- Eu entrego! O dinheiro não é meu.
- E se for uma nota de cinquenta reais, você entrega?
- Bem, confesso que vou ficar na dúvida, a gente ganha tão pouco aqui na Prefeitura...
- Está vendo? A moral de cada um depende do preço ofertado. Tem gente que não vende a sua moral por preço nenhum, mas tem gente que acha perfeitamente normal ficar com um real do alheio.
- O que devemos fazer, então?
- Bem, acho que devemos criar uma Tabela da Moralidade. Me dá um tempo para rascunhar essa Tabela... Vejamos... Pronto! Veja se ficou boa:

Tabela da Moralidade
Valor da Gorjeta/Propina
Efeito do Ato
Até R$50,00
Ato Moral
Acima de R$50,00 até R$100,00
Ato Moral, desde que não seja reincidente
Acima de R$100,00 até R$500,00
Ato Imoral com atenuantes
Acima de R$500,00
Ato Imoral


- Interessante... Assim, pelo menos, nós fixamos uma regra... Fica estabelecido o limite padrão da moralidade aqui na Prefeitura.
- Exatamente!
- E aqueles servidores que não aceitam nada, nem um real?
- Bem, a Tabela é sugestiva, não pretendemos mudar o conceito moral dos servidores, mas, com a Tabela, eles já tomam conhecimento da gravidade ou não dos seus atos.
- Está bem. Vou digitar essa Tabela e fixar nas paredes das repartições.
- Mas não assina! Deixa lá, coladinha na parede, sem ninguém saber se é oficial ou não. Afinal, moralidade é assunto de foro íntimo e, talvez, o prefeito discorde...


sábado, 26 de outubro de 2013

O infortúnio de ser prefeito

Da série “Conversas de Botequim”


- Meu amigo Ivanildo Precioso! Há quanto tempo!
- Rapaz! Que prazer te ver aqui!
- Você sumiu! Eu soube que agora você é prefeito de Manguezinho!
- Pois é. Este é o motivo do meu desaparecimento.
- Quer dizer que agora você frequenta os bares de Manguezinho.
- Que nada! Se eu quiser beber tenho que fugir de lá.
- Mas por quê?
- Meu amigo, lá em Manguezinho não tenho liberdade pra nada! Eu sou o prefeito!
- Poxa! Nem de beber?
- Você não imagina! Se eu beber, vão me chamar de pau d’água; se vou à igreja, vão me chamar de fingido e os fiéis das outras igrejas ficam zangados; se vou a um enterro, tenho que ir a todos; se ajudo a um, tenho que ajudar a todos. É um inferno!
- Bem, Manguezinho é um município muito pequeno, talvez seja isso.
- Manguezinho tem dois mil habitantes e eu acho que a metade da população fica na porta da minha casa todas as manhãs, querendo falar comigo. Tem gente que passa a madrugada na minha calçada para pegar lugar.
- Puxa vida! Vai beber o quê?
- Garçom!! Traz três Germana gelada!!
- Três? Somo dois!
- Vou beber duas de uma só vez. Cara, você não sabe a fria em que entrei.
- Ser prefeito?
- Isso! Ser prefeito de uma cidade de dois mil habitantes e todo mundo conhecido. Não posso nem cobrar os tributos!
- Ninguém paga?
- Se eu mando a guia para alguém da oposição, ele vai dizer que é perseguição política. Se eu mando a guia para alguém do meu partido, ele vai dizer que é traição. Ninguém paga!
- Mas você pode cobrar daqueles que não são políticos.
- Meu caro, numa cidade pequena todo mundo é político ou amigo de político, ou, então, inimigo de algum político. Não sobra ninguém!
- E como você paga as contas?
- Ah, tem um dinheirinho do governo federal, uns seiscentos mil por mês...
- Já dá pra alguma coisa...
- Tira a parte carimbada da educação e da saúde, sobram uns trezentos mil para pagar os funcionários, entregar a parte da Câmara Municipal, e acabou.
- Não sobra um dinheiro para melhorar a cidade?
- Sobra nada! E o povo reclama, diz que a cidade está suja, não tem coleta de lixo, não tem pavimentação, uma loucura!
- Mas o povo não paga os tributos e ainda reclama?
- Pois é. Olha, esse negócio de ser prefeito é uma furada. Minha mulher está querendo até se separar. Sai na rua e é vaiada, se veste uma roupa nova dizem que estou roubando.
- Nossa! Lamento o seu infortúnio...
- Obrigado, meu amigo. Posso lhe pedir um favor?
- Claro, prefeito, o que pedir!
- Você pode pagar essa conta? Estou durinho, durinho.


domingo, 20 de outubro de 2013

Comissão de Direitos Humanos proíbe gays na igreja

Recebi a seguinte carta:

Caro mestre,
Quando nasci, meus pais, os médicos e todas as demais testemunhas presentes decretaram que eu era do sexo masculino, pelo simples olhar do meu corpo despido. O fato de eu ter órgãos genitais masculinos já servia de prova irrecorrível. Mas, eu não era homem, era mulher, e não tinha meios de defender a minha própria convicção, porque, afinal, eu era um simples bebê recém-nascido.

Sem o meu consentimento, registraram-me com nome de homem e sexo masculino. Fui criada como homem, roupas de homem, brincadeiras de homem, jogos de homem. Não me deixavam brincar com bonecas, obrigavam-me a ficar chutando aquela bola idiota. Se eu chorasse, gritavam: “homem não chora!”. Eu queria uma saia, vestiam-me calças. Eu queria sandálias, calçavam-me chuteiras.

Na escola, o sofrimento era maior. Os meninos debochavam e me maltratavam, chamando-me de mulherzinha ou de bicha. As meninas me evitavam assustadas com aquele ‘menino’ que gostava de brincar com elas.

Em casa, meu pai não me tolerava, a me ofender por qualquer coisa que eu fizesse. O simples modo de andar, de falar, já era motivo de gritos e berros. Minha mãe me olhava como se eu fosse portadora de uma doença contagiosa. Ela chorava pelos cantos e me obrigava a acompanhá-la no culto, para ver se o pastor conseguia tirar o diabo do meu corpo.

Quanto mais crescia, maior o pesadelo da minha vida. Eu era vítima constante do bullyng na escola. Os professores faziam piadinhas a meu respeito na sala de aula, para provocar risadas dos alunos. Caro mestre, esta foi a minha vida na infância e juventude, e tudo pelo simples fato de terem errado o meu sexo. Eu era mulher, eu sou mulher, e ninguém respeitava a verdade da minha própria vida, como se eu não tivesse o direito de decidir sobre a minha própria natureza. Aliás, acho que esse direito realmente não existe.

Quando pude, fui embora da casa dos meus pais. Fiz concurso público (tive que registrar-me como homem) e fui trabalhar numa repartição repleta de pessoas preconceituosas, mas não me importei, já estava acostumada.  Confesso que não tive coragem de vestir-me como mulher. Para os demais, seria uma afronta, poderia ser prejudicada no serviço. Fui covarde, é verdade, mas, de tanto sofrer dissabores, ofensas e maledicências, mantive a roupagem de homem neste corpo de mulher.

Em toda essa vida, o meu único refúgio foi Deus. Mantive o costume imposto pela minha mãe de frequentar a igreja e sentir o conforto do Pai Eterno.

Recentemente, recebi uma graça divina: apaixonei-me por uma pessoa que era o inverso de mim. Era, oficialmente, mulher, mas, na realidade, era homem. E da mesma forma que eu, protegia-se nos braços de Jesus.

E agora, o infortúnio arrasador. O Pastor proibiu-nos de frequentar sua igreja. Considerou um escândalo participarmos do culto de mãos dadas. Fomos expulsos da Casa de Deus.

E vem daí, a minha consulta, caro mestre: o que posso fazer? Posso ingressar na Justiça contra a decisão do Pastor?

Atenciosamente,
(xxxxxxxxxxxxx)  


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Escudo contra meteoros condena o inventor

Luca d’Epaminondas, já considerado benfeitor da humanidade e o maior gênio da raça humana, foi condenado ao banimento do nosso planeta pela Corte Internacional de Haia. O motivo da condenação foi o de causar transtornos ao sossego público durante a tensa semana em que milhares de meteoros invadiram a atmosfera da Terra.

Em sua defesa, o cientista tentou explicar que a instalação do escudo eletromagnético em torno da Terra foi a salvação de todos os seres vivos do planeta e que o barulho das explosões dos meteoros no espaço, antes de atingirem o solo, foi um transtorno mínimo diante da apocalipse evitada. “Eu havia alertado as autoridades que centenas de meteoros de grande porte ultrapassariam a proteção natural da atmosfera e cairiam sobre a Terra, causando a devastação total. Nada fizeram, a não ser longas reuniões, almoços e jantares. Tive que agir por conta própria”, explicou o cientista.

Influenciou na decisão dos juízes o artigo publicado pelo Médico, Dr. Hannibal Lecter, na revista “Orelhas Sexuais”, famosa por suas fotos provocativas de orelhas totalmente despidas. O Dr. Hannibal Lecter, especialista em doenças auditivas de crianças de idade entre dois anos e três meses a quatro anos e cinco meses, sustentou a tese de que aquele barulho ensurdecedor ocorrido naquela semana prejudicaria a audição das crianças por toda a vida. “Se sobrevivêssemos à catástrofe, teríamos uma juventude de surdos”, disse o médico durante um almoço de churrasco de cordeiro mamão na sua residência.

Outro motivo da condenação de Luca d’Epaminondas foram os atos de vandalismo praticados durante a semana das explosões espaciais. Os grupos anarquistas denominados Black Blocs Noise, saquearam e destruíram lojas e equipamentos públicos e atacaram os policiais com armas de fogo e coquetéis molotov. Os policiais se defenderam com estilingues e cusparadas, porque as armas letais e não-letais estão proibidas. Os governos acusaram o cientista de ter sido o responsável indireto das depredações.

Alguns países da América do Sul enviaram moções condenatórias ao Tribunal de Haia, afirmando que o programa Bolsa de Proteção Auricular, pelo qual foram distribuídos milhões de aparelhos de proteção contra barulho para os bolsistas eleitores previamente cadastrados, provocou um enorme rombo nas contas públicas.

Outro fato de grande repercussão foi o número de suicídios naquela semana. Milhares de pessoas cometeram suicídio por não suportarem o intermitente barulho dos meteoros sendo destruídos na estratosfera. O Pastor Afonso Bórgia, da Igreja Apocalipse Divina, disse à reportagem que o escudo contra meteoros de Luca d’Epaminondas foi uma invenção demoníaca, contrariando os desígnios de Deus. “A chuva de meteoros foi um castigo divino e não podíamos evitá-la, e sim aceitá-la humildemente”, explicou o Pastor.

Sem direito aos embargos infringentes, Luca d’Epaminondas pediu um mês para cumprir a pena e ter tempo de preparar sua espaçonave. O inventor não informou para onde viajaria, mas se cogita que ele fixará residência no satélite Europa do planeta Júpiter, apesar do frio intenso lá reinante.  


domingo, 13 de outubro de 2013

Manicômio Fiscal - O ISS

Da série: Manicômio Fiscal
Clique no vídeo, e leia o artigo com a música.
A minha microscópica empresa está sediada em Petrópolis, mas eu moro em Niterói. Presto um serviço de treinamento num hotel de Curitiba para servidores municipais de Araucária (exemplo hipotético). Em qual Município devo pagar o Imposto sobre Serviços?
Bem, de acordo com a lei (Lei Complementar 116/03) devo pagar em Petrópolis. Acontece que o serviço nem foi desenvolvido em Petrópolis, organizei o curso na minha casa, em Niterói. E desenvolver o serviço não significa a sua execução. Executei-o em Curitiba. Mas os tomadores do serviço são de Araucária. Deste modo, em tese, se o simples desenvolvimento do serviço já se considera fato gerador do imposto, Niterói teria direito. Se o importante for o local de sua execução, Curitiba teria direito. Se o que importa é o destinatário (tomador) do serviço, Araucária teria direito.

Este é um simples exemplo de centenas de outros que afligem o Fisco, os contribuintes, a Justiça e os tributaristas. A doutrina, em maioria, diz que a hipótese de incidência do ISS é a efetiva prestação do serviço, ou seja, o momento em que o serviço for prestado é que se dá o fato imponível. Todos os procedimentos anteriores (assinar contrato, negociar preço, desenvolver e preparar o serviço) são prestações-meio e não servem como evidência material da efetiva prestação. Um contrato pode ser assinado e, mesmo assim, não ocorrer a prestação. Um serviço pode ser desenvolvido, estar pronto e acabado, mas o tomador não recebeu o seu resultado, por qualquer motivo. Não houve, assim, a ‘efetiva’ prestação. O momento fulcral surge quando o prestador cumpre a sua obrigação, isto é, quando entrega o resultado do serviço ao tomador. Esta é a posição da maioria doutrinária.

Por seu lado, a Justiça bate cabeça. Às vezes decide pelo local onde o serviço foi efetivamente prestado, às vezes decide pelo local do estabelecimento do prestador, e até mesmo pelo local onde o contrato foi assinado, como aconteceu na discussão do ISS de leasing. Os ministros do STJ ainda não encontraram o rumo certo, isto é, estão desnorteados. Levantam a caveira de uma cabeça e perguntam: “Serei eu um mero intérprete leguleio ou um doutrinador? Eis a questão.”

A Lei Complementar 116/03 fixa como regra matriz a incidência no local do estabelecimento prestador, mas, como se estivesse compondo o samba do branquelo doido, tenta explicar o que vem a ser estabelecimento, abrindo inúmeras variáveis até mesmo a de classificar como estabelecimento um escritório de representação, sem explicar a quem representa este escritório, se representa o prestador ou o tomador do serviço. E mais ainda: abre tantas exceções à regra matriz que esta acaba por não ser mais regra matriz de coisa nenhuma, apenas uma regrinha fútil para atarantar a vida dos outros.  

O Fisco Municipal tenta trazer a brasa para sua sardinha, porém, é verdade, muitos Municípios procuram seguir a lei federal. Todavia, qualquer tipo de serviço prestado à própria Prefeitura sofre retenção do imposto, esquecendo-se, neste ponto, a regra da lei.

E assim, no pátio do manicômio, discutem os loucos legisladores, ou pretensos legisladores, cada um com a sua tese lunática. E, em cima do muro, os contribuintes, perplexos, assistem a discussão, sem saber o caminho a tomar, tendo ao fundo os acordes da Dança Macabra, com os esqueletos bailando em volta deles. A perdida noiva vai acabar sozinha, sem saber em que esqueleto se agarrar.  





segunda-feira, 7 de outubro de 2013

São José dos Ausentes

Notícia em jornal: “Caiu neve em São José dos Ausentes”.



Sou de São José dos Ausentes, apesar de presente nesta terra incongruente, de calor inclemente e de neve surpreendente; este país continente, de extensas planícies, planaltos e vertentes, o país dos profetas videntes, de bizarros presidentes e de cândidos docentes, todos com seus discursos nobres e eloquentes. Sou de São José dos Ausentes, terra dos ricos imprudentes, de banqueiros intransigentes, do operariado pungente, da política ambivalente, do surrealismo vigente e de um povo silente.
Sou de São José dos Ausentes, onde a história só descreve o presente, sem explicar o passado correspondente, sem perspectivas futuras evidentes, a não ser de vãs promessas pendentes. Sou um dos ausentes, desses muitos inexistentes, essa massa invisível de gente, que apenas vota obediente e nem percebe o seu ato inconsequente.

Sou de São José dos Ausentes, palco da destruição do meio ambiente, de empreendimentos decadentes, da ladroagem reticente, de um poder político persistente, de uma camarilha subserviente, e de um povo (ah, o povo) no silêncio dos inocentes. E, ora, quem diria! Já tivemos a passeata irreverente, o Tiradentes, a revolta dos inconfidentes, a rebelião dos crentes, um fugaz grito independente e o massacre dos insurgentes.


Sou de São José dos Ausentes, já velho, cansado e doente, como muitos desse enorme contingente. Assisto a tudo, pacientemente. Tenho íntima pena dos irmãos carentes, que não percebem a realidade indecente. Sigo nesta estrada, sem nada pela frente, a não ser uma neve indolente, a cair, suavemente, nesta terra dos ausentes.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

A vingança maligna

Da série: “Conversa de Fiscais”

Entrou esbaforida na repartição, jogando a bolsa em cima da mesa.
- Cara, estou p da vida! Uns calhordas! Desgraçados!
O parceiro, que estava sentado em sua mesa, assustou-se.
- O que houve? Recebeu trote de sequestro relâmpago?
- Que trote nada! O dono da empresa veio insinuar propina, filho da ...
- Hei! Olha o palavrão! Vamos lá! Senta aí direitinho e me conta o que aconteceu.
- Cara! Eu fico revoltada com essa gente que acha que pode nos corromper.
- O sujeito te ofereceu dinheiro?
- Ah, se oferecesse assim na lata eu chamaria a polícia, eu ia fazer um escarcéu! Mas esse pessoal é vivo! Ele insinuou, assim, como não quer nada, jogando a isca, o filho da mãe!
- Ah minha amiga, e você ainda não se acostumou a isso? Todo mundo acha que Fiscal é tudo ladrão.
- Pois é! E é isso que me revolta. Nós precisamos fazer alguma coisa!
- Você está certa, mas fazer o quê?
- A verdade é que a nossa profissão é ingrata, temos que estar sempre com um pé atrás... Tem café aí?
- Frio e aguado.
- Porra! Nem café a gente tem nessa repartição. O computador está funcionando?
- De manhã estava parado, mas agora voltou.
- Tudo bem. Estou com um plano na cabeça...
- Xii, lá vem encrenca!
- Me diz uma coisa: há quanto tempo trabalhamos juntos?
- Uns oito anos, eu acho.
- Pois é. E nesses oito anos quais foram os tipos de contribuintes que encontramos?
- Ora, de todos os tipos... Sonegadores e gente direita...
- Isso! Encontramos gente direita, sem maldade, que cometeram erros e nós autuamos, não é?
- O que podemos fazer? Errou, tem que ser autuado.
- Pois eu acho que este é o nosso erro. Se errar sem maldade, sem intenção, nós temos que ajudar, explicar como fazer, orientar, mas não autuar.
- Discordo. Nossa função é fiscalizar. Quem dá orientação é o contador e o advogado...
- Este é o nosso erro! Temos, sim, que ajudar os inocentes. A nossa legislação é muito complicada, cheia de exceções e regrinhas malucas. Agora, se ficar repetindo o erro, aí autuamos pela reincidência.
- E os sonegadores?
- Ah! Nos sonegadores porrada em cima! Sem dó nem piedade!
- Então, de acordo com a cara do contribuinte nós vamos saber quem autuar ou apenas orientar?
- Não é pela cara! É pela conduta, pelo comportamento! Você, com todo esse tempo de Fiscal, ainda não consegue perceber o caráter do contribuinte?
- Bem, a maioria sim, mas, às vezes, a gente esbarra com uns caras de pau, com aquela cara de anjinho e é um tremendo sonegador.
- Então, vamos fazer o seguinte: quando a gente sentir que o cara está com má intenção, nós fiscalizamos tudo, tintim por tintim, leve o tempo que for. E tudo que for errado, nós autuamos. Quando a gente sentir que o cara é correto, que não venha com insinuações maledicentes, a gente orienta, corrige, ajuda. Concorda comigo?
- No fim eu sempre concordo...
- Ótimo! Então me ajuda a olhar tudo desse cara que tentou me comprar. Vamos examinar tudo e qualquer erro que seja porrada nele!!
- Nossa! Você é vingativa!
- Meu amigo, a minha vingança está na caneta!


quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O petróleo do “pré-sol”

Eu estava sentado ao lado do seu Broa no banquinho de madeira que a Prefeitura andou instalando na calçada da nossa praia. Nós olhávamos o grande mar a nossa frente, calados como convém em certos momentos de reflexão, oração e admiração. Eu gosto do seu Broa, pessoa ponderada, discreta, seu Broa tem uma idade indefinida, eu diria que a sua idade está entre cinquenta e oitenta anos, não sei dizer melhor. Seu cabelo curto e crespo ainda é preto, mas a barba rala já embranquece. A cor negra de sua pele é agora meio cinzenta, curtida pelo sol.

Depois de um bom tempo calado, ele disse naquele tom baixo e suave, sem desviar os olhos do mar: “Estou com uma ideia de ganhar dinheiro”. “O dinheiro não está dando?”, perguntei curioso, pois não sei bem de onde o seu Broa tira dinheiro, se de aposentadoria ou do bolsa família. “A família cresce, doutor. Chegou outro bisneto”, respondeu com a sua calma.

Olhei pra ele que mantinha os olhos no mar. “Qual é a ideia?” Ele mudou de posição, aprumou o corpo e respondeu: “Estou pensando em explorar o óleo do pré-sol”. Segurei um sorriso para não melindrá-lo. “O senhor está se referindo ao pré-sal”. Quem deu um sorriso foi ele. “Não, doutor, eu falo do pré-sol. Este pré-sal é dos bacanas, já está todo fatiado e reservado. Estou de olho é no pré-sol”. “Mas que óleo é esse, do pré-sol?”, perguntei. Ele explicou.

“Todas as noites, antes do amanhecer, esses navios que o senhor está vendo, que agora ficam estacionados aqui na beira da praia, limpam seus tanques e despejam o óleo no mar. Quando amanhece, a praia fica desse jeito, a água brilhando de óleo, a areia preta. Este é o óleo que eu quero explorar, o óleo do pré-sol”.

Olhei o quebra-mar e entendi. “E como o senhor pretende explorar esse óleo?”, perguntei. “Compro alguns barcos, contrato essa meninada, e todas as noites a gente retira o óleo da água e colocamos em garrafas pet. Fiz uns cálculos e acho que dá para encher umas quinhentas garrafas pet por noite”.

Percebi que o assunto era sério, aliás, o seu Broa não é de brincadeira. “E quem vai comprar o óleo?”, perguntei. “Ora, a Petrobrás. Falou em óleo ela compra tudo”. De forma alguma eu quis contradizer o amigo. Tentei ponderar: “Mas, seu Broa, o senhor vai precisar de dinheiro, comprar os barcos, as garrafas, contratar gente, abrir empresa...”. “Já pensei nisso tudo”, respondeu. “Pego dinheiro no Benedé”. Procurei corrigir delicadamente: “No BNDS? Mas será que ele empresta?”. Ele me olhou nos olhos. “Doutor, o senhor é homem letrado, mas ingênuo. Como foi que aquele moço, o tal de Aico conseguiu?”

Pensei um pouco para saber do que ele estava falando. “Ah, o Eike Batista! Mas o senhor não acha meio diferente? Ele é empresário, conhecido no mercado...” O seu Broa me interrompeu: “E não conhecia nada de petróleo. O segredo é o seguinte: arranja uns políticos pra mexer os pauzinhos, pede alguém pra botar a ideia no papel, eles gostam muito de coisa escrita, chuta a produção e o lucro pra cima, em vez de quinhentas garrafas por dia escreve quinhentas mil. Eles gostam de coisa grande”.
“E o senhor já tem os políticos?”. Ele passou a mão na cabeça. “Vou falar com aquele tal de Pisão, aquele que veio aqui naquela noite. Ele é candidato e todo candidato tem interesse em novos negócios”. Lembrei-me do Pisão, na noite de inauguração do início das obras de pavimentação na comunidade. “E qual vai ser o nome da empresa?”, perguntei. Ele coçou a barba rala. “Estou pensando em ipsilone, alguma coisa como OBY, Organização Broa Ipsilone. Aquele moço, o tal de Aico, botou X na empresa dele; eu ponho ipsilone”. “E quem vai escrever o projeto?”, perguntei desconfiado. Ele olhou pra mim e colocou a mão no meu ombro. “Estava pensando no senhor”. Sobrou pra mim.