terça-feira, 27 de agosto de 2013

Relatório Fiscal (III) - 3ª Parte


(continuação)

3ª e última parte:

O mais novo de aparência, que simulava não me ver, a vaguear displicentemente o olhar pelo horizonte, fingindo estar muito distante de tão cansativa entrevista, ordenou desdenhosamente ao mais velho: “responda”. E o mais velho respondeu: “Não conhecemos”. Aquela resposta, no plural, aliviou-me, eu acertara no tratamento!  Resolvi insistir na conversa: “e a Fazenda Mimosa, os senhores conhecem?”.  Mais uma vez, o mais jovem deu a ordem ao mais velho: “responda”, e o mais velho respondeu: “fica a uns dez quilômetros adiante, mas não sabemos a condição da estrada, talvez não dê para passar este veículo”. E apontou com a sua mão esquerda o velho jipe.  Respondi, amavelmente: “tudo bem, eu agradeço a informação... eu não sou desta região e estou meio perdido... eu sou da capital...”

Ao dizer essas palavras, o mais novo abriu um largo sorriso e exclamou alegremente: “Ora! Sendo o senhor visitante do exterior, compete-me a recepção! Peço desculpas por não ter me pronunciado antes, pois o julgava um nativo, gente da vizinhança com quem não devo compartilhar, cabendo a ele, em tais circunstâncias, as tarefas executivas. Permita apresentar-me: eu sou o Rei e ele (apontando com a sua mão direita o rosto velho) é o súdito. Por favor! Aceite a minha hospitalidade, vamos entrar e comemorar!”.

Ele fez questão que eu ficasse ao seu lado, ou seja, do lado direito do corpo, e acompanhei aquele estranho homem de duas cabeças em direção a casa, enquanto ele não parava de falar e dizia ser muito raro receber visitantes do exterior e sentia muito não ter sido comunicado com devida antecedência, a tempo de preparar uma festiva recepção. Provavelmente, segredou-me, mais um erro do seu súdito, um problema esses serviçais de hoje em dia, absolutamente ineficazes. "O maior problema de qualquer Estado é sempre o povo que o integra”, frase dita em tom mais elevado e dirigida à cabeça do súdito que, cabisbaixo, seguia-nos inexoravelmente, como não podia deixar de ser.

Sentamos na varanda, e o Rei, ao dobrar e repousar o peso de sua majestosa perna direita sobre a esquerda da plebe, disse-me solene: “meu súdito fabrica uma deliciosa cachaça, quer experimentar?”. Aceitei, agradecido, e ele, a sorrir satisfeito, ordenou ao outro: “traga a cachaça do Rei e as taças de cristal!”.  Imediatamente, o homem de duas cabeças dirigiu-se ao interior da casa, com o súdito de semblante decidido a realizar a missão, e o Rei, de olhos fechados, bocejava, dando a demonstrar o tédio que sente a nobreza ao ser obrigada a acompanhar o povo.

A cachaça era deliciosa!  Eu e o Rei bebíamos, enquanto o súdito, de cabeça baixa, não participava, em absoluto, da bebida e da conversa, aliás, atitude que a certa quantidade de bebida consumida, eu já considerava perfeitamente correta, afinal, se todos participassem das coisas boas da vida, tudo seria trivial, nada poderia distingui-las como especiais, dando plena razão à Majestade, porém, lá pela quinta taça, para minha surpresa, o Rei, já um tanto embriagado, gritou magnânimo: “Cachaça para o povo!”. O súdito entendeu a mensagem e correu a pegar seu copo, repetindo: “obrigado, meu Rei, obrigado, meu Rei”, e o outro, de olhos fechados, bonachão, recostado em seu ombro, lá foi junto, a receber os agradecimentos do seu povo.

Senhor Diretor, gostaria de deixar registrado que não bebo, absolutamente, em serviço, conforme estabelece o regulamento e, neste sentido, encareço relevar o pequeno delito cometido em face da singularidade da ocasião.

O efeito da cachaça fez dissipar a minha discrição, tornando a conversa mais informal, repletas de piadas e gracejos, a assumir coragens talvez indevidas nas ocasiões formais, a brincar com o súdito, que apenas sorria, gentilmente, e nada respondia. Pois foi neste estado de embriaguez fortuita que ousei perguntar ao Rei o motivo daquela distinção hierárquica entre eles, se, afinal, possuíam o mesmo corpo.  “É a lei natural, respondeu o Rei, no Estado sempre há de existir o líder e o liderado, o mandante e o mandado, o rei e o súdito”, mas, insisti, "quem foi que o designou em vista da unidade existente?". “Uma decisão que demandou tempo, disse o Rei; o início foi o caos, o embate durou anos, eu queria comer, ele queria andar, eu queria ler, ele dormir, nada dava certo, brigávamos o tempo todo. Decidimos, então, pela adoção da monarquia e eu, como estou à direita, de acordo com a lei divina, fui o escolhido”.  "Não seria mais justa”, retruquei, “a adoção da democracia, com mandatos temporários, cada um exerceria o governo em determinado período de tempo?".

Os dois olharam-me, surpresos de início, um breve silêncio, tempo de refletir sobre o teor da pergunta, e depois deram gargalhadas, até mesmo o súdito que não participava dos assuntos. O Rei respondeu: “desculpe, meu amigo, mas que ideia absurda, onde já se viu alguém mandar e depois ser mandado? Ninguém aceita instâncias cronológicas na ordem do poder, a autoridade não se outorga como se fosse um bem material; este é o engodo da sua tal democracia, a classe dominante nunca perde o poder, apenas substituem pessoas. A alternância das classes somente se realiza com revoluções, mudança por votos é pura demagogia”. E o súdito, ainda rindo da minha ignorância, concordava meneando sua cabeça velha e estúpida.

Nas despedidas, fui presenteado com um garrafão da bebida, e, em retribuição, de acordo com as normas do protocolo, ofereci a minha calculadora de bolso, o que proporcionou um grande prazer ao Rei, a enaltecer a tecnologia do mundo exterior, e que haveria um momento, num futuro ainda não previsível, de incluir a modernidade no seu Estado (aproveito a oportunidade da narrativa para explicar a V. Sª. o motivo do meu pedido de uma nova calculadora ao Almoxarifado, pedido este que solicito antecipadamente a sua aprovação). Deixei o meu endereço e coloquei-me ao dispor de Sua Majestade, caso necessitasse de qualquer coisa do mundo exterior.

É o relatório.

POST-SCRIPTUM – Recebi ontem uma gentil carta do Rei, dando-me notícias do seu reino. Mandava-me, também, saudações do seu povo, garantindo ser uma gente boa, um tanto indolente, é verdade, mas, de natureza afável e cordata, apesar, coitada, de ser analfabeta. O que fazer se o Estado é destro, a mão que rege é a mesma que escreve e assina, e esta pertence a Sua Majestade?

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