quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Relatório Fiscal (II)

Processo nº 42.593.313/71 - Ordem de Fiscalização nº 0217/71
Finalidade: Fiscalizar os estabelecimentos agropecuários da região de Serra Grande.

Senhor Diretor,

Logo ao chegar à cidade de Mansidão, nos contrafortes da Serra Grande, fui detido e conduzido incontinenti à cadeia pública sob a acusação de excitar, promover e estimular a inveja, conforme acusação recebida e já registrada em boletim de ocorrência, formulada por autor desconhecido. O objeto da acusação era o veículo por mim conduzido, o novíssimo jipe, tração nas quatro rodas, adquirido graças à generosa ação de Vossa Senhoria ao acolher meus insistentes e até calorosos reclamos, removendo todos os obstáculos políticos e burocráticos para atender, por que não dizer, às justas solicitações deste humilde servidor fiscal, Deus o abençoe, se me permite tamanha irreverência. 

Segundo os termos do referido boletim, a presença daquele veículo nas ruas poeirentas, de terra seca e areias pulverizadas pelo sol castigante, cercadas de casebres arruinados e corrompidos ao tempo, era causa de previsíveis acirramentos de inveja dos moradores, fato que evidenciava e caracterizava a prática do delito, a justificar a imediata detenção do infrator, tudo na forma da lei.

Por mais que tentasse argumentar minha presença passageira e a condição de servidor público federal, o policial não vacilou e sem qualquer hesitação trancafiou-me na única cela disponível da cadeia pública. Foi, também, providenciada a remoção do veículo da rua principal, sendo estacionado nos fundos da delegacia, afastado, assim, das vistas invejosas da população.

Por mais que Vossa Senhora já conheça a minha longa experiência de saber lidar com momentos imprevistos e surpreendentes, afirmo que não perdi a tranquilidade e mantive total domínio de minhas reações, por saber que uma inspirada solução seria por certo encontrada diante da denúncia registrada pela autoridade policial.  Confesso, porém, que uma densa preocupação pairou sobre os meus pensamentos quando conversei com o detento da cela vizinha, que fora condenado por trazer para a cidade uma jovem mulher, bonita de alma e saliente de corpo, com quem pretendia se casar. Por provocar inveja, fora condenado a um ano de cadeia, mais a imposição de multa pecuniária, além de receber ordem sumária de fazer retornar a moça às suas origens.

“O meu caso foi grave porque havia provas concretas e contundentes do crime”, explicou-me o condenado. “Durante a investigação a polícia apurou uma série de denúncias de pessoas assumidamente invejosas, até mesmo de homens casados, de gente velha e, imagine o senhor, até de outras mulheres. Um caso perdido, doutor”, desabafou o indivíduo, ao confessar em lágrimas o profundo arrependimento de ter causado tanto sentimento de pesar dos seus vizinhos diante de sua felicidade aparente.

Consolei o vizinho de cela, mas, é verdade, com a repugnância de estar ali, a conversar e conviver com um criminoso confesso, um desses perniciosos exemplos de incitação à inveja social, ora, prezado Diretor, nunca o meu caso se assemelharia ao dele, um mínimo, é verdade, de vaidade fortuita, uma admiração repentina quando cruzei a cidade ou no breve momento de estacionar para tomar um café e abastecer o carro. E ele não! Afrontou a todos a trazer a mulher para viver em sua companhia, por toda a vida, para engravidar aos olhos de todos, cuja gravidez o povo entenderia e imaginaria as intimidades da sua origem, a despertar, portanto, a natural cobiça, inveja e a culminar no ódio, na revolta dos desejos impossíveis de serem realizados. Não havia, sem dúvida, qualquer comparação entre os nossos casos.

Ao perceber que não encontraria solução mais simples, um agrado, uma propina ao policial, pois suas atitudes demonstravam inusitada honestidade no exercício de suas funções, apelei ao meu direito constitucional de ter a presença de um advogado (permita-me informar, Vossa Senhoria, que se houvesse a possibilidade de resolver o problema mediante a paga de uma propina, tal valor, por evidência, seria por mim mesmo custeado, não fazendo parte da prestação de contas das despesas de viagem e sobrecarregar os cofres públicos. Deixo registrada essa ressalva, porque sabemos da naturalidade cínica assumida por outros auditores em lançar tais e outras despesas pessoais na prestação de contas, e a viver, por consequência, uma vida faustosa, casas de praia, carros na garagem, circulando em boates e restaurantes, vestindo roupas finas e, até mesmo, eu soube, viagens constantes à Europa, enquanto eu, nesses lugares onde o vento retorna, muitas vezes saciando a fome comendo palma ao lado dos bodes, as despesas rigidamente controladas, pois são deles as atitudes que sempre reprovei, uma grande injustiça, apesar de não ter nada a ver com suas vidas. Fique certo, Vossa Senhoria, que eu não sou invejoso!

Mais ou menos uma hora depois chegou o advogado, de terno surrado e gravata suja e desbotada, o único advogado da cidade, aquele que provavelmente decidiria o meu destino, sem qualquer outra hipótese de solução, pelo menos por mim não imaginada.

Percebi na conversa sua grande experiência em crimes de inveja. “Temos que descaracterizar a materialidade do fato”, disse-me ele. “E é possível?” “Sim, porque a denúncia formal, até agora, é o de excitação à inveja e não propriamente o crime de estabelecer a inveja”. O perigo, segundo suas palavras, seria apresentar-se alguém e formular a queixa de ter sentido inveja. “Neste caso, será difícil sua absolvição”, conclusão que me deixou mais preocupado ainda.

“O que vamos fazer, doutor?” O advogado estabeleceu uma estratégia. “A inveja é do carro, não do senhor, pois vamos danificar o carro, evitando a criação do sentimento nas pessoas”.

Danificar o carro? Tal solução não me agradava, mas, confesso, qualquer coisa que me salvasse viria em boa hora. Fui obrigado a aceitar a solução proposta, condoído em danificar aquele valioso jipe conquistado a tamanhas dificuldades.

O advogado retirou-se para tomar algumas providências. Mais tarde, da cela ouvia-se um barulho de motor roncando, tossindo e por diversas vezes morrendo. A fumaceira expelida invadiu a cadeia com aquele cheiro de óleo e fuligem. Dava para ouvir do interior do prédio as gargalhadas de gente reunida na rua. Alguém do lado da janelinha da cela comentou: “Mas que porcaria de carro!”. Riam e debochavam.

Ao terminar a zoeira, diversas pessoas entraram no posto policial, todos querendo registrar a ausência de qualquer vestígio de inveja do carro, pelo contrário, uma grande piedade ao proprietário daquele veículo. O advogado, satisfeito, reunia as provas de que aquele veículo, de fato, não incitava a inveja no povo, denúncia anônima desprovida de qualquer confirmação material.

O juiz veio à cidade só no dia seguinte e tive de passar a noite na cela, nem banho tomado, servindo-me de café e pão, refeição oferecida pela municipalidade, sem nenhuma regalia por ser funcionário público federal, ao contrário do preso vizinho, a comer feijão de corda e macaxeira, direito reservado aos presos de condenação já transitada em julgado, uma absurda discriminação da lei, cujo teor deveria ser revisto urgentemente.  Nem um pedaço de macaxeira frita o criminoso me ofereceu, comendo lá, no seu canto, de cabeça arriada sobre o prato sustentado nos joelhos, calado e comendo, certamente satisfeito com o seu maldito arrependimento. Devia morrer apedrejado em praça pública, foi o que pensei ao engolir aquele pão mofado e duro.

Fui à presença do juiz e o advogado, com maestria e apurada técnica, apresentou todas as evidências a comprovar minha inocência, “eu nunca faria isso, excelência!” (...) “Jamais incitaria a inveja aos meus concidadãos”, foram as minhas palavras quando interrogado.

Felizmente, o juiz me absolveu, mas não deixou de cobrar custas judiciais por mim aceitas de imediato, valor que me faltará no decorrer da viagem, até de pouca importância, porém, adicionado aos honorários do advogado, justíssimos, por sinal, o montante supera as estimativas de despesas futuras, sendo, por isso, o motivo de enviar, em anexo, os comprovantes devidos, pedindo a Vossa Senhoria a gentileza de providenciar o meu ressarcimento.

A propósito, providenciei rebocar o carro até a cidade vizinha e viajei de ônibus. Tais despesas constam da prestação de contas. É o relatório.

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