(Continuação)
2ª Parte.
De volta ao relato da viagem, horas
depois, finalmente, surgiu ao longe uma casa, meio escondida em um grotão da
serra, por onde a estradinha, ali úmida e escorregadia, já brotando grama rala
no caminho e visgo nas pedras, sinais de estrada de pouco uso, descia quase em
queda livre, perigo que não ia me esmorecer, apesar da minha apreensão em
depositar a minha segurança naqueles suspeitosos freios do velho carro,
problema que tenho a certeza V. Sª corrigirá em breve.
Segui animado, porque casa significa gente,
e como prova de certeza ao meu próprio convencimento da vida existente, uma
fumaça rolava da chaminé, a lembrar-me desenhos ou garatujas de crianças, o
cenário bucólico da vida campestre que se resume a uma casa quadrada, feita de
tijolos de barro, rústica, todavia, a irradiar sinais de segurança e aconchego,
casa plantada ao pé da grande montanha, tão pequenina perante o mundo, mas, do
jeito que está, assim, protegida pela sombra da serra, ela se aviva, parece
movimentar-se, agiganta-se, tudo graças à fumaça que brotada de suas entranhas
sobe dançando nas alturas.
Havia uma porteira, cerca de arame e
mourões firmes, devidamente perfilados, com os arames passando através de
perfurações simetricamente produzidas na madeira, prática fora do costume da
região, muito estranho encontrá-lo, técnica do meu conhecimento em vista da
longa experiência e tantas viagens em diversos brasis, pois sabe muito bem,
Senhor Diretor, que não basta o estudo sem o sustento da experiência acumulada,
motivo evidente do triste desenlace daquele colega, V. Sª sabe do que estou
falando, e peço desculpas em lembrar a trágica ocorrência, pois faltou ao jovem
auditor a necessária experiência de perceber que naquele momento era mais
indicado meter sebo nas canelas, em vez de conduzir-se sob o impensado impulso
de enfrentar às unhas um touro a soltar fogo pelas ventas, onde já se viu,
coitado.
Abri a porteira e dirigi o carro sobre
um quintal gramado, ao lado se via uma bela horta de alface e chicória, tomateiros
ao fundo, tudo bem cuidado, dava-se para perceber o zelo do dono da
propriedade, e parei o jipe na frente da casa, mas com toda aquela zoeira do
motor (V.S.ª não há de esquecer, por favor), não apareceu ninguém, fato
inusitado em tais situações, quando o barulho do motor de um carro exerce
extraordinária atração às crianças, fazendo-as surgir em correria de todos os
lados, qual mariposa atraída ao lume do lampião, para depois, visto ser a
visita pessoa estranha, elas, acanhadas, rodeiam a margem, estrategicamente
afastadas e no aguardo, com os dedos metidos na boca, da chegada de um parente
adulto, presença que as encorajam a invadir o carro e matar todas as suas
curiosidades.
Gritei o usual “ô de casa!”, e depois
de repetir a chamada várias vezes, surgiu na porta um estranho indivíduo,
deixando claro a V. Sª que não era estranho pela vestimenta, pois calçava
botinas, vestia uma desbotada calça jeans e camisa de algodão grosso, roupa
comum do pessoal do campo, além de ser alto e forte, nada a estranhar também,
mas aquele homem, aquela criatura, ao meu espanto, tinha algo de peculiar e que
nunca, em tempo algum, este relator havia visto! Senhor Diretor! Nesta vida de
tantas e tantas viagens, nunca me fora dada oportunidade de ver coisa igual!
Ele era dotado de duas cabeças! Isso mesmo que V. Sª leu! Duas cabeças! O que
me deixou, confesso, em estado de profunda perplexidade.
Peço desculpas pela imodéstia, V. Sª
me conhece, pois sempre me considerei uma pessoa discreta e acostumada às
aberrações deste mundo, que não são poucas, fazendo-me lembrar daquela passagem
do homem que tinha seis dedos em cada mão, motivo de minhas desavenças com
aquele imbecil da assessoria, desculpe o palavreado, cujo nome recuso-me a
escrever, a chamar-me de mentiroso, para depois enfiar a cara no tacho quando
lhe mostrei a foto do homem com a mão espalmada. Desta vez, porém, foi difícil
manter a situação sob controle e adotar uma atitude discreta, ao ter à minha
frente, um homem de duas cabeças, ora, bem diferente se fosse, por exemplo, um
homem de três pernas; eu simplesmente evitaria olhar para baixo; ou se fosse
corcunda; eu fingiria não perceber a anomalia, mas como poderia, senhor
Diretor, ou como podemos evitar a visão do rosto de uma pessoa? E tendo dois, qual deles encarar? Olhar para
o céu, abaixar os olhos? Por Deus! Agir desse modo seria uma grosseria! Mesmo assim, apesar do atribulado estado de
espírito, não entrei em pânico e procurei disfarçar da melhor forma possível a
surpresa que me causava a visão daquela deformidade.
Ajudou-me também a lembrança de outro
caso de xifópago por mim presenciado em andanças no mato grosso, um bezerro
nascido com duas cabeças e o fazendeiro sem saber o que fazer com ele, problema
resolvido graças a uma sucuri faminta que o engoliu, quando deixado
estrategicamente em sua trilha habitual e já conhecida dos campeiros. A enorme serpente
deve ter lá pensado com seus anéis, “que sorte! De um bote só peguei dois
bezerros”, cobra não perde tempo de conjecturar sobre anomalias, “coitadinho, que
tristeza nascer assim”, a fome dispersa sentimentalismos, e ficamos de longe
assistindo o demorado trabalho da predadora em tragar a presa, ou as presas,
questão totalmente irrelevante para a cobra.
Sobrepujou-se, assim, a longa
experiência investigativa da minha vida de auditor, o que me proporcionou,
instintivamente, perceber, enquanto o homem caminhava em minha direção, as diferenças
entre as duas cabeças, tendo uma delas a aparência mais velha, enrugada, magra,
olhos encovados e a pele gasta no tempo e curtida ao sol, a usar um roto chapéu
de palha, enquanto a outra possuía uma pele lisa, faces rosadas e gordas, e
sobre a cabeça um belo chapéu de couro castanho.
Já próximo de mim, o aparentemente
mais velho (deixo aqui registrada a inverosimilhança de tal suposição, mais
velho, mais jovem, se certamente nasceram na mesma data, pois frutos do mesmo
corpo), perguntou-me: “pois não?”. Procurei responder com a maior naturalidade
possível: “estou procurando o caminho da Fazenda Morena, os senhores poderiam
me ajudar?”.
Perceba, Senhor Diretor, o grave risco
por mim assumido de cometer um erro grotesco na formulação da minha pergunta, diante
da angustiosa dúvida em saber se acertara ao tratar aquele homem no plural,
como se fossem duas pessoas, ou seria, de fato, uma só pessoa? Tenho certeza de
não estar exagerando nas reflexões, todas afloradas em uma fração exígua de
tempo, o de responder aos gêmeos siameses. E se eu estivesse errado, se o
tratamento correto fosse o singular, como reagiriam? Entenderiam minha pergunta
instigada por um aparente preconceito? Sem dúvida, eram cabeças diferentes, uma
delas, mal tratada, a outra, bem conservada, mas não seriam partes de um mesmo
corpo, uma só unidade, uma só vida? A partir de que momento, ou em que estágio de
vida, eles poderiam afirmar a individualidade de cada um? Fiquei assim, a
refletir a respeito de tais questões, e acabei por decidir a favor da
pluralidade do ser, mas, posso garantir, foi uma decisão difícil diante da
minha total inexperiência em conversar com uma só pessoa, porém, portadora de
duas cabeças, e ainda, a ampliar o grau de dificuldades, em nada semelhantes.
Felizmente, a minha decisão foi a mais acertada, como veremos.
(continua)
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