Na época da minha mocidade, havia um mendigo chamado Sivoca que vivia nas ruas do meu bairro. Trazia sempre nas mãos um jornal velho e um livro grosso, já sem capa e de páginas desbotadas. Sivoca falava sozinho e a garotada o considerava maluco, talvez por ser mendigo, talvez por falar sozinho, ou talvez pela combinação das duas idiossincrasias.
Sivoca pedia comida nas casas, e quando lhe davam sentava-se na calçada e, enquanto comia, fazia discursos sobre temas desbaratados e para nós, os jovens, totalmente incompreensíveis. Discorria sobre a luta de classes, a mais-valia, libertação do proletariado, dialética materialista, e tudo dito de amontoado, a juntar as frases sem interrupções, a falar de boca vazia ou de boca cheia, cuspindo ideias e comida. A criançada ficava ao lado, observando e dando risadinhas.
Vivia andrajoso, barbudo e de pouco banho, mas, de vez em quando, aparecia de roupa nova, sapato lustroso, barba feita e banho tomado. Os moradores diziam que uma alma caridosa providenciava essas coisas e lhe dava um trato higiênico uma vez por mês.
Foi numa dessas ocasiões de boa aparência que Sivoca foi preso por militares da Aeronáutica, ou da Marinha, as testemunhas divergem, quando fazia o seu discurso desconexo em frente de um bar na Praia de Icaraí. Os policiais arrancaram de suas mãos o livro encardido e leram o seu título: O Capital, de Karl Marx. “Temos em mãos um comunista”, devem ter pensado. Sivoca foi jogado na viatura, e como não parava de falar e nem se dando conta do que ocorria, começou a ser agredido ali mesmo.
Um frequentador do bar, que o conhecia das ruas, tentou explicar aos militares que ele era maluco e não fazia mal a ninguém. Levou umas bordoadas e a ameaça de ser levado também. Pegar um comunista confesso, pois discurso que ninguém entendia era coisa de comunista, seria um ato meritório e elogiado pelas autoridades superiores. Aquele sujeito era diferente dos outros, que quando apanhados cagavam nas calças, negavam ser comunistas, clamavam ser católicos apostólicos romanos desde pequeninos e que nunca, Deus me livre, nunca comeram criancinhas. Pois aquele individuo era corajoso, este sim dá gosto de pegar, mesmo sendo surrado continuava a fazer sua pregação infame, ora, oportunidade como essa não se perde.
Nunca mais Sivoca foi visto. E provavelmente ninguém foi defendê-lo e tentar ajudá-lo. Afinal, era um maluco, um mendigo perdido e desligado da família e do mundo que o rodeava.
E agora surge uma comissão da verdade, não para denunciar os mandantes dos crimes, mas para induzir os carrascos a confessarem suas matanças. Não entendo bem a lógica desse conceito, dizem que deu certo na África do Sul, e brasileiro adora copiar “cases” do estrangeiro, sem refletir sobre as diferenças culturais, sociais, políticas e econômicas dos países.
Bem, de qualquer modo duvido que um carrasco venha a confessar que matou um reles maluco, um maluco sem herdeiros, interesses indenizatórios ou de motivação política. Era só o Sivoca, quem vai se importar?
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