Levanta o pano. Cenário: o setor de Plantão Fiscal da Prefeitura. Sentado em frente à mesa um Auditor e diante dele um modesto cidadão.
Cidadão – Eu fui pegar o habite da minha casa que construí, mas me mandaram falar com o senhor.
Auditor – Hum... Deve ser referente a este processo que acabo de receber da Secretaria de Urbanismo.
Cidadão – É esse mesmo, eu vi lá, de capa azul escuro...
Auditor – Todos são de capa azul escuro...
Cidadão – Mas o meu tem essa mancha de café aqui na frente, o canto está rasgado, e, olha só, escreveram uma receita de vatapá aqui nas costas, está vendo?
Auditor – Está bom, está bom. Pois bem. Vamos ver... A peça exordial está incompleta...
Cidadão – Não está não senhor! Eu exordiei tudo, a sala, o quarto, a cozinha, a casinha está exordiada que nem um brinco.
Auditor – O senhor, por exemplo, não identificou o quantum debeatur.
Cidadão – Isso é fácil: cada cômodo tem quatro cantos todos debeatados, posso garantir ao senhor.
Auditor – O senhor não está entendendo o conspecto deôntico da hermenêutica.
Cidadão – Eu fiz a casa de concreto e o cimento não era Mauá, mas não era hermeneuta, não senhor.
Auditor – Bem, não importa, eu preciso calcular o ISS da obra...
Cidadão – O INSS? Ah, eu já fui lá e me disseram que não precisa pagar, é casa pequena...
Auditor – Não é INSS, é ISS.
Cidadão – Ah, é outra coisa, o senhor não sabe o susto que levei agora. Posso levar o habite?
Auditor – O senhor tem que pagar o ISS antes. Qual é o tamanho da área edificada?
Cidadão – Bem, é um caixotinho, tem vinte por vinte.
Auditor – Então, tem quarenta metros quadrados... O material que o senhor usou é de primeira?
Cidadão – Sim senhor! Tudo de primeira! Nunca tinha sido usado, não senhor! Comprei tudo lá na loja do Macarrão, ele pode provar!
Auditor – Quantos operários trabalharam na edificação?
Cidadão – Deixa eu ver... Quando eu bati a laje, chamei o Zé Torto, já aposentado; o Palito, que não trabalha por causa da magreza, mas adorou o angu que a minha mulher fez; o Botija, que cata lata na rua, muito gordo pra ser operário; acho que não tinha nenhum operário não.
Auditor – Mas o senhor já citou três, não teve mais ninguém?
Cidadão – Teve mais eu, a Ludica, minha filha, o Bilé, filho da comadre. E minha mulher ficou fazendo o angu, que ajuda muito.
Auditor – Está certo. Foram, então, sete operários e levando em conta o custo de construção... Deixa eu ver aqui, na tabela do sinduscon... Pronto! O ISS será de trezentos e quatorze reais e vinte oito centavos. Posso fazer a guia?
Cidadão – Guia pra quê?
Auditor – Para o senhor pagar o ISS! O senhor está passando mal? Está pálido, quer um copo d’água?
Cidadão – Não precisa não, doutor, já estou me refazendo... Me diga uma coisa, se eu não pagar esse tal de ISS, o Prefeito vai derrubar a minha casa?
Auditor – Claro que não, mas o senhor não recebe o habite-se.
Cidadão – E se eu não tiver o habite, o Prefeito derruba a minha casa?
Auditor – Não, mas o senhor não vai poder inscrever a sua casa no Cadastro.
Cidadão – E pra que serve inscrever a casa no cadastro?
Auditor – Ora, para legalizar, para o senhor pagar o IPTU.
Cidadão – Hem!? Ainda vou ter de pagar esse pitu aí? Adeus, doutor!
Auditor – Espera aí!! O senhor não pode levar o processo!!! Pega esse homem! Pega esse homem!
Desce o pano.
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