Ao acordar
pela manhã, o advogado não sabia mais pensar e falar em português. Só
transmitia palavras em latim!
A descoberta
não foi assim, tão repentina. A primeira manifestação de tão estranha
metamorfose ocorreu quando ao olhar no espelho do banheiro, proferiu para si
mesmo: “nemo tenetur se detegere”.
Assustado, procurou pensar a frase em português: difficile est longum subito deponere, foi a sua conclusão.
A dificuldade maior foi a de conversar com
a esposa e filhos. No café da manhã, a esposa o repreendeu por não ter feito a
barba, fato verdadeiro cujo motivo foi a confusão mental da interferência
latina. Ele respondeu: “barba non facit
philosophum”. Ela deu um sorriso, talvez orgulhosa com os conhecimentos do
marido, e comentou que a filha teve nota máxima na aula de balé. “arbor bona fructus bonos facit”, ele
respondeu pomposamente.
No fórum, suas manifestações causaram
espanto e admiração. Ao defender o seu cliente, o advogado proferiu longo e
metódico discurso, mas todo em latim. O juiz ouviu perplexo,e fingiu entender
tudo que ele dizia, fazendo acenos com a cabeça como estivesse compreendendo
seus termos e concordando com a preleção. O advogado encerrou a defesa com a
frase: “Veritatis simplex orati”. O
juiz aguardou, porém, que o advogado se sentasse para ter certeza da conclusão,
e acabou por inocentar o réu, diante das “elaboradas teses apresentadas pela
defesa”.
Fama volat! A notícia espalhou-se nos
corredores do fórum e já servia de conversas animadas na lanchonete do prédio.
O advogado circulava de peito estufado e cabeça erguida, sendo saudado por todos
com profundas reverências. A esta altura já o chamavam de mestre. Um jovem
estagiário, mais afoito, perguntou-lhe o teor da tese de sua defesa. Ele
respondeu: “allegatio sine probatione
veluti campana sine pistillo est”. O jovem, que não entendeu a resposta,
deu um sorriso: “mestre, o senhor honra a classe da advocacia”. E ele disse: “advocaci nascuntur, judices fiunt”.
No segundo
dia, foi procurado por um advogado conhecido. “Amici, ad qui venisti?” ele perguntou. O amigo foi logo dizendo
que uns clientes poderosos estavam interessados em contratá-lo com remunerações
de boa soma. “Melius est abundare quam
deficere”, ele respondeu.
Mas, no
terceiro dia, ele acordou falando em grego clássico. ἡ Ἑλληνικὴ γλῶσσα, hē Hellēnikḕ glō̃ssa. Saiu do banheiro a cantar as Ilíadas e a
esposa chamou a ambulância do sanatório. Dizem que, atualmente, em sua prisão
domiciliar e com tornozeleira na canela, ele fala em aramaico. Todas as suas
petições de defesa são recusadas, com um “provido, mas não conhecido”.
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