segunda-feira, 28 de abril de 2014

O Honesto

Onogésimo Catagrão, de honestidade radical e exacerbada, catador de lixo no granel, encontrou uma luxuosa bolsa no despejo de um valhacouto. Ao perceber a qualidade da peça, Onogésimo procurou o administrador do asilo e entregou a bolsa, sem ao menos examinar o conteúdo, curiosidade não despertada e a não lhe dizer respeito.

Dia seguinte, o catador de lixo foi apreendido por policiais e conduzido à delegacia para averiguações preliminares das autoridades, em vista do fato de que aquela bolsa pertencera à senhora vítima de brutal latrocínio dia antes do achado, crime ocorrido na saída de um banco localizado nas proximidades do valhacouto. O administrador levara a bolsa à delegacia e ao ser aberta uma razoável quantia de dinheiro foi encontrada, além dos documentos da infortunada senhora.

A polícia inquiriu duramente Onogésimo Catagrão a ser indagado sobre o motivo que o levara a não surrupiar o dinheiro contido na bolsa, talvez por ter ficado com o envelope que continha a rica soma retirada da conta bancária, o que já seria plenamente suficiente a considerar um sucesso a criminosa empreitada.

Onogésimo Catagrão protestou inocência e, por isso, foi violentamente repreendido pelos policiais, pessoas que não suportam ter suas inteligências subestimadas, e gritaram aos ouvidos do catador de lixo que a honestidade é sempre suspeita, o melhor seria logo confessar o crime, pois um criminoso confesso é merecedor de atenção e respeito nos bastidores policiais e judiciais, ao contrário de um pobretão que se diz honesto, qualificação nada condizente à situação paupérrima do acusado.

Onogésimo Catagrão foi conduzido à prisão e aos costumes, e procedimento criminal instaurado com todas as evidências da prática do crime, além do fato mais grave de se declarar honesto, expressão de magnitude sacrossanta permitida somente aos elevados do saber e aos agraciados de riquezas.  

Até mesmo o juiz riu da insolência do sujeito em se proclamar honesto, diante de tantas comprovações de que um reles catador de lixo, de roupa rasgada e morador de casebre, nunca deixaria de cometer, no mínimo, o furto do dinheiro existente na bolsa. “A alegação vil de ser honesto nos assombra”, escreveu sua excelência na sentença, e concluiu: “a virtude da honestidade é um dom exclusivo dos afortunados, estes, sim, com plenos direitos de desprezar os bens de terceiros”.

E Onogésimo Catagrão foi condenado a duras penas, recluso na cela dos desvalidos, sem prover das regalias prisionais dos criminosos declarados, e acabou por ser morto a pancadas por não confessar onde escondera o envelope com dinheiro.


Um comentário:

  1. O sistema processual e prisional funcionando perfeitamente aos detentores dos TRÊS P's

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