Na última segunda-feira fui fazer a matinal caminhada na orla da praia, a cumprir exigência médica e da qual me esquivo rotineiramente. Finjo que vou andar e no primeiro banco do calçadão eu me sento e fumo sossegado o meu cigarro. Praia vazia às seis da manhã e o único presente é o Seu Broa, sentado no banco e olhando o mar.
- Bom dia Seu Broa, resolveu os problemas com o contador?
Seu Broa tem a capacidade de falar com alguém sem tirar os olhos do mar.
- Ah, doutor, tudo resolvido, agora sou firma de cenepejota. Tenho até nota fiscal.
- Eletrônica ou de papel?
Ele aguçou os olhos para ver melhor um navio que surgia na boca da baía.
- Nota de papel. A gráfica fez talões com a mesma numeração. Disse que um tal de Caixa 2 prefere assim... Não entendi, mas já estou usando.
- E as vendas estão boas?
Ele tirou o boné para coçar a cabeça.
- Não posso reclamar, mas a coisa não vai ficar boa para sempre...
- Por que o senhor diz isso?
Finalmente, ele olhou para mim.
- Com o senhor eu posso confiar. Eu soube que essas plataformas foram proibidas de ancorar aqui perto da praia. Isso significa que o óleo do pré sol vai terminar.
- Poxa! Logo agora que o senhor ia tão bem! Quem proibiu?
- Esse tal de governo, a marinha, a polícia, a guarda-costas, eu sei lá quem proibiu!
- Mas o senhor sabe o motivo?
Ele agora acompanhava o percurso de um navio que deixara a baía e seguia para o norte.
- Dizem que essas plataformas estavam sujando a praia... Agora o senhor vê a ironia da coisa: eu trabalho justamente limpando a sujeira. Quantas pessoas perderão trabalho se não existir mais sujeira?
Fiquei sem saber o que responder.
- Bem, o senhor sabe que o governo deve cuidar da limpeza...
- Mas não acabar com a sujeira! Olha, doutor! Se ninguém mais jogar lixo na rua os garis perderão o emprego. Vão varrer o quê, se não tem lixo pra varrer?
- Mas o senhor não acha um absurdo as pessoas jogarem lixo na rua ou na praia?
- Absurdo por quê? Lixo é pra jogar fora mesmo, ninguém vai comer lixo. E é pra isso que existe o gari, o caminhão de lixo, o varredor da praia, um monte de trabalhadores. Olha, doutor, eu fico imaginando um mundo sem lixo... Quanta gente desempregada, uma miséria só.
Ele dobrou a perna, respirou fundo, e continuou:
- Outro dia, uma moça falou na televisão que nós temos de comer folha de cenoura, folha de couve-flor, folha de não sei de quê! Eles querem que a gente coma lixo!
Discordei.
- Nem tanto, Seu Broa, lá em casa a mulher faz uma sopa maravilhosa de folhas de verduras. A gente chama de sopa de entulho...
Ele deu uma risadinha.
- Que é isso, doutor! Não vai espalhar essa história na comunidade que o povo vai debochar. Daqui a pouco o senhor vai dizer que come espinha de peixe, cabeça de peixe...
- Cabeça de peixe eu como! O senhor não come?
Ele deu outra risadinha.
- O senhor come lixo porque não precisa, não tem fome, isso é moda de rico, só pra dizer que come coisa diferente, como é que se diz? Exótica! É! Comida exótica! O pobre tem que ter pelo menos dignidade, doutor! Se não vira animal. Eu vejo essa gente pedindo tudo do governo, é casa pra morar, é dinheiro do aluguel, é dinheiro da condução, é cesta de não sei o quê... Coitados! Esses pobres já perderam a dignidade...
Resolvi voltar ao assunto anterior.
- Mas não seria boa a cidade limpinha, sem lixo?
Ele deu um sorriso irônico.
- Seria o fim do mundo! Convulsão social, manifestações populares, revolução!
Desisti de argumentar.
- Bem, o que o senhor pretende fazer se acabar o óleo na praia?
Ele coçou a cabeça novamente.
- Tem um sujeito que quer comprar a minha firma. Ofereceu um bom dinheiro...
- E o senhor vai vender?
- Acho que vou, enquanto ele não ficar sabendo dessa novidade.
- Puxa, seu Broa, isso não é muito correto...
- Ora, não teve o outro aí que vendeu papel quando soube que não tinha petróleo na firma dele? Um tal de Seu X?
- Mas isso é considerado crime...
- Não senhor! Neste ponto o doutor está errado. Eu li que isso é considerado informação privilegiada. E quem tem a informação privilegiada deve aproveitar esse privilégio, estou certo?
E ficou olhando o navio se perder no horizonte.
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