terça-feira, 27 de agosto de 2013

Relatório Fiscal (III) - 3ª Parte


(continuação)

3ª e última parte:

O mais novo de aparência, que simulava não me ver, a vaguear displicentemente o olhar pelo horizonte, fingindo estar muito distante de tão cansativa entrevista, ordenou desdenhosamente ao mais velho: “responda”. E o mais velho respondeu: “Não conhecemos”. Aquela resposta, no plural, aliviou-me, eu acertara no tratamento!  Resolvi insistir na conversa: “e a Fazenda Mimosa, os senhores conhecem?”.  Mais uma vez, o mais jovem deu a ordem ao mais velho: “responda”, e o mais velho respondeu: “fica a uns dez quilômetros adiante, mas não sabemos a condição da estrada, talvez não dê para passar este veículo”. E apontou com a sua mão esquerda o velho jipe.  Respondi, amavelmente: “tudo bem, eu agradeço a informação... eu não sou desta região e estou meio perdido... eu sou da capital...”

Ao dizer essas palavras, o mais novo abriu um largo sorriso e exclamou alegremente: “Ora! Sendo o senhor visitante do exterior, compete-me a recepção! Peço desculpas por não ter me pronunciado antes, pois o julgava um nativo, gente da vizinhança com quem não devo compartilhar, cabendo a ele, em tais circunstâncias, as tarefas executivas. Permita apresentar-me: eu sou o Rei e ele (apontando com a sua mão direita o rosto velho) é o súdito. Por favor! Aceite a minha hospitalidade, vamos entrar e comemorar!”.

Ele fez questão que eu ficasse ao seu lado, ou seja, do lado direito do corpo, e acompanhei aquele estranho homem de duas cabeças em direção a casa, enquanto ele não parava de falar e dizia ser muito raro receber visitantes do exterior e sentia muito não ter sido comunicado com devida antecedência, a tempo de preparar uma festiva recepção. Provavelmente, segredou-me, mais um erro do seu súdito, um problema esses serviçais de hoje em dia, absolutamente ineficazes. "O maior problema de qualquer Estado é sempre o povo que o integra”, frase dita em tom mais elevado e dirigida à cabeça do súdito que, cabisbaixo, seguia-nos inexoravelmente, como não podia deixar de ser.

Sentamos na varanda, e o Rei, ao dobrar e repousar o peso de sua majestosa perna direita sobre a esquerda da plebe, disse-me solene: “meu súdito fabrica uma deliciosa cachaça, quer experimentar?”. Aceitei, agradecido, e ele, a sorrir satisfeito, ordenou ao outro: “traga a cachaça do Rei e as taças de cristal!”.  Imediatamente, o homem de duas cabeças dirigiu-se ao interior da casa, com o súdito de semblante decidido a realizar a missão, e o Rei, de olhos fechados, bocejava, dando a demonstrar o tédio que sente a nobreza ao ser obrigada a acompanhar o povo.

A cachaça era deliciosa!  Eu e o Rei bebíamos, enquanto o súdito, de cabeça baixa, não participava, em absoluto, da bebida e da conversa, aliás, atitude que a certa quantidade de bebida consumida, eu já considerava perfeitamente correta, afinal, se todos participassem das coisas boas da vida, tudo seria trivial, nada poderia distingui-las como especiais, dando plena razão à Majestade, porém, lá pela quinta taça, para minha surpresa, o Rei, já um tanto embriagado, gritou magnânimo: “Cachaça para o povo!”. O súdito entendeu a mensagem e correu a pegar seu copo, repetindo: “obrigado, meu Rei, obrigado, meu Rei”, e o outro, de olhos fechados, bonachão, recostado em seu ombro, lá foi junto, a receber os agradecimentos do seu povo.

Senhor Diretor, gostaria de deixar registrado que não bebo, absolutamente, em serviço, conforme estabelece o regulamento e, neste sentido, encareço relevar o pequeno delito cometido em face da singularidade da ocasião.

O efeito da cachaça fez dissipar a minha discrição, tornando a conversa mais informal, repletas de piadas e gracejos, a assumir coragens talvez indevidas nas ocasiões formais, a brincar com o súdito, que apenas sorria, gentilmente, e nada respondia. Pois foi neste estado de embriaguez fortuita que ousei perguntar ao Rei o motivo daquela distinção hierárquica entre eles, se, afinal, possuíam o mesmo corpo.  “É a lei natural, respondeu o Rei, no Estado sempre há de existir o líder e o liderado, o mandante e o mandado, o rei e o súdito”, mas, insisti, "quem foi que o designou em vista da unidade existente?". “Uma decisão que demandou tempo, disse o Rei; o início foi o caos, o embate durou anos, eu queria comer, ele queria andar, eu queria ler, ele dormir, nada dava certo, brigávamos o tempo todo. Decidimos, então, pela adoção da monarquia e eu, como estou à direita, de acordo com a lei divina, fui o escolhido”.  "Não seria mais justa”, retruquei, “a adoção da democracia, com mandatos temporários, cada um exerceria o governo em determinado período de tempo?".

Os dois olharam-me, surpresos de início, um breve silêncio, tempo de refletir sobre o teor da pergunta, e depois deram gargalhadas, até mesmo o súdito que não participava dos assuntos. O Rei respondeu: “desculpe, meu amigo, mas que ideia absurda, onde já se viu alguém mandar e depois ser mandado? Ninguém aceita instâncias cronológicas na ordem do poder, a autoridade não se outorga como se fosse um bem material; este é o engodo da sua tal democracia, a classe dominante nunca perde o poder, apenas substituem pessoas. A alternância das classes somente se realiza com revoluções, mudança por votos é pura demagogia”. E o súdito, ainda rindo da minha ignorância, concordava meneando sua cabeça velha e estúpida.

Nas despedidas, fui presenteado com um garrafão da bebida, e, em retribuição, de acordo com as normas do protocolo, ofereci a minha calculadora de bolso, o que proporcionou um grande prazer ao Rei, a enaltecer a tecnologia do mundo exterior, e que haveria um momento, num futuro ainda não previsível, de incluir a modernidade no seu Estado (aproveito a oportunidade da narrativa para explicar a V. Sª. o motivo do meu pedido de uma nova calculadora ao Almoxarifado, pedido este que solicito antecipadamente a sua aprovação). Deixei o meu endereço e coloquei-me ao dispor de Sua Majestade, caso necessitasse de qualquer coisa do mundo exterior.

É o relatório.

POST-SCRIPTUM – Recebi ontem uma gentil carta do Rei, dando-me notícias do seu reino. Mandava-me, também, saudações do seu povo, garantindo ser uma gente boa, um tanto indolente, é verdade, mas, de natureza afável e cordata, apesar, coitada, de ser analfabeta. O que fazer se o Estado é destro, a mão que rege é a mesma que escreve e assina, e esta pertence a Sua Majestade?

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Relatório Fiscal (III) - 2ª Parte


(Continuação)

2ª Parte.

De volta ao relato da viagem, horas depois, finalmente, surgiu ao longe uma casa, meio escondida em um grotão da serra, por onde a estradinha, ali úmida e escorregadia, já brotando grama rala no caminho e visgo nas pedras, sinais de estrada de pouco uso, descia quase em queda livre, perigo que não ia me esmorecer, apesar da minha apreensão em depositar a minha segurança naqueles suspeitosos freios do velho carro, problema que tenho a certeza V. Sª corrigirá em breve.

Segui animado, porque casa significa gente, e como prova de certeza ao meu próprio convencimento da vida existente, uma fumaça rolava da chaminé, a lembrar-me desenhos ou garatujas de crianças, o cenário bucólico da vida campestre que se resume a uma casa quadrada, feita de tijolos de barro, rústica, todavia, a irradiar sinais de segurança e aconchego, casa plantada ao pé da grande montanha, tão pequenina perante o mundo, mas, do jeito que está, assim, protegida pela sombra da serra, ela se aviva, parece movimentar-se, agiganta-se, tudo graças à fumaça que brotada de suas entranhas sobe dançando nas alturas.

Havia uma porteira, cerca de arame e mourões firmes, devidamente perfilados, com os arames passando através de perfurações simetricamente produzidas na madeira, prática fora do costume da região, muito estranho encontrá-lo, técnica do meu conhecimento em vista da longa experiência e tantas viagens em diversos brasis, pois sabe muito bem, Senhor Diretor, que não basta o estudo sem o sustento da experiência acumulada, motivo evidente do triste desenlace daquele colega, V. Sª sabe do que estou falando, e peço desculpas em lembrar a trágica ocorrência, pois faltou ao jovem auditor a necessária experiência de perceber que naquele momento era mais indicado meter sebo nas canelas, em vez de conduzir-se sob o impensado impulso de enfrentar às unhas um touro a soltar fogo pelas ventas, onde já se viu, coitado.

Abri a porteira e dirigi o carro sobre um quintal gramado, ao lado se via uma bela horta de alface e chicória, tomateiros ao fundo, tudo bem cuidado, dava-se para perceber o zelo do dono da propriedade, e parei o jipe na frente da casa, mas com toda aquela zoeira do motor (V.S.ª não há de esquecer, por favor), não apareceu ninguém, fato inusitado em tais situações, quando o barulho do motor de um carro exerce extraordinária atração às crianças, fazendo-as surgir em correria de todos os lados, qual mariposa atraída ao lume do lampião, para depois, visto ser a visita pessoa estranha, elas, acanhadas, rodeiam a margem, estrategicamente afastadas e no aguardo, com os dedos metidos na boca, da chegada de um parente adulto, presença que as encorajam a invadir o carro e matar todas as suas curiosidades.

Gritei o usual “ô de casa!”, e depois de repetir a chamada várias vezes, surgiu na porta um estranho indivíduo, deixando claro a V. Sª que não era estranho pela vestimenta, pois calçava botinas, vestia uma desbotada calça jeans e camisa de algodão grosso, roupa comum do pessoal do campo, além de ser alto e forte, nada a estranhar também, mas aquele homem, aquela criatura, ao meu espanto, tinha algo de peculiar e que nunca, em tempo algum, este relator havia visto! Senhor Diretor! Nesta vida de tantas e tantas viagens, nunca me fora dada oportunidade de ver coisa igual! Ele era dotado de duas cabeças! Isso mesmo que V. Sª leu! Duas cabeças! O que me deixou, confesso, em estado de profunda perplexidade.

Peço desculpas pela imodéstia, V. Sª me conhece, pois sempre me considerei uma pessoa discreta e acostumada às aberrações deste mundo, que não são poucas, fazendo-me lembrar daquela passagem do homem que tinha seis dedos em cada mão, motivo de minhas desavenças com aquele imbecil da assessoria, desculpe o palavreado, cujo nome recuso-me a escrever, a chamar-me de mentiroso, para depois enfiar a cara no tacho quando lhe mostrei a foto do homem com a mão espalmada. Desta vez, porém, foi difícil manter a situação sob controle e adotar uma atitude discreta, ao ter à minha frente, um homem de duas cabeças, ora, bem diferente se fosse, por exemplo, um homem de três pernas; eu simplesmente evitaria olhar para baixo; ou se fosse corcunda; eu fingiria não perceber a anomalia, mas como poderia, senhor Diretor, ou como podemos evitar a visão do rosto de uma pessoa?  E tendo dois, qual deles encarar? Olhar para o céu, abaixar os olhos? Por Deus! Agir desse modo seria uma grosseria!  Mesmo assim, apesar do atribulado estado de espírito, não entrei em pânico e procurei disfarçar da melhor forma possível a surpresa que me causava a visão daquela deformidade.

Ajudou-me também a lembrança de outro caso de xifópago por mim presenciado em andanças no mato grosso, um bezerro nascido com duas cabeças e o fazendeiro sem saber o que fazer com ele, problema resolvido graças a uma sucuri faminta que o engoliu, quando deixado estrategicamente em sua trilha habitual e já conhecida dos campeiros. A enorme serpente deve ter lá pensado com seus anéis, “que sorte! De um bote só peguei dois bezerros”, cobra não perde tempo de conjecturar sobre anomalias, “coitadinho, que tristeza nascer assim”, a fome dispersa sentimentalismos, e ficamos de longe assistindo o demorado trabalho da predadora em tragar a presa, ou as presas, questão totalmente irrelevante para a cobra.  

Sobrepujou-se, assim, a longa experiência investigativa da minha vida de auditor, o que me proporcionou, instintivamente, perceber, enquanto o homem caminhava em minha direção, as diferenças entre as duas cabeças, tendo uma delas a aparência mais velha, enrugada, magra, olhos encovados e a pele gasta no tempo e curtida ao sol, a usar um roto chapéu de palha, enquanto a outra possuía uma pele lisa, faces rosadas e gordas, e sobre a cabeça um belo chapéu de couro castanho.

Já próximo de mim, o aparentemente mais velho (deixo aqui registrada a inverosimilhança de tal suposição, mais velho, mais jovem, se certamente nasceram na mesma data, pois frutos do mesmo corpo), perguntou-me: “pois não?”. Procurei responder com a maior naturalidade possível: “estou procurando o caminho da Fazenda Morena, os senhores poderiam me ajudar?”.

Perceba, Senhor Diretor, o grave risco por mim assumido de cometer um erro grotesco na formulação da minha pergunta, diante da angustiosa dúvida em saber se acertara ao tratar aquele homem no plural, como se fossem duas pessoas, ou seria, de fato, uma só pessoa? Tenho certeza de não estar exagerando nas reflexões, todas afloradas em uma fração exígua de tempo, o de responder aos gêmeos siameses. E se eu estivesse errado, se o tratamento correto fosse o singular, como reagiriam? Entenderiam minha pergunta instigada por um aparente preconceito? Sem dúvida, eram cabeças diferentes, uma delas, mal tratada, a outra, bem conservada, mas não seriam partes de um mesmo corpo, uma só unidade, uma só vida? A partir de que momento, ou em que estágio de vida, eles poderiam afirmar a individualidade de cada um? Fiquei assim, a refletir a respeito de tais questões, e acabei por decidir a favor da pluralidade do ser, mas, posso garantir, foi uma decisão difícil diante da minha total inexperiência em conversar com uma só pessoa, porém, portadora de duas cabeças, e ainda, a ampliar o grau de dificuldades, em nada semelhantes. Felizmente, a minha decisão foi a mais acertada, como veremos.

(continua)

domingo, 25 de agosto de 2013

Relatório Fiscal (III) - 1ª Parte


(Este relatório está dividido em três partes)

 

1ª Parte:

Processo 40.568.333/61

Referência: Relatório de viagem pertinente à inspeção de estabelecimentos agropecuários na região de Pirapora, Estado de Minas Gerais, período de julho de 1961.

Senhor Diretor,

Aproximava-se o meio-dia e este relator já próximo de Pirapora, vista de frente e deitada na planície, contornou o largo trevo rodoviário e seguiu a oeste, afastando-se da entrada principal da cidade, até chegar a um posto de gasolina, lugar onde estacionou, esticou as pernas, bebeu um cafezinho e perguntou ao moço do bar se  estava no caminho certo, conforme o mapa que se lhe estendia no balcão de madeira.  Estava, ou pelo menos, havia uma possibilidade de chegar às fazendas procuradas, se seguisse por um caminho de terra, cuja entrada ao lado do posto ele apontava de braço estendido, com o intuito de ajudá-lo a localizar, embora difícil de percebê-la, porque, na realidade, aquilo nem parecia estrada de carro, seria mais caminho de gente ou de animais, contudo, a gente sabe, são  vias importantes essas estradinhas, única ligação de muitas propriedades à rodovia principal, e se um dia em uma delas V. Sª transitar, aceite a sugestão, descuide-se de ter um mapa, pois lá não lhe servirá de valia.
Sabe V. Sª que este é meu serviço, visitar propriedades e fiscalizar a aplicação do financiamento concedido, assim, já acostumado a tais dificuldades de encontrar fazendas, geralmente perdidas nos confins do sertão, ou, se V. Sª me permite tamanha ousadia, até mesmo inexistentes, quantas vezes obrigaram-me a procurar fantasmas, resultados, segundo soube de fontes confidenciais, porém fidedignas, de conluios e tramóias entre as partes, negócios financeiros fraudulentos urdidos nos gabinetes, não o de V. Sª., antecipo-me a declarar, eu o conheço muito bem, mas, sinceramente, são segredos tão mesquinhos, pois a mim que nada tem a compartilhar na roubalheira, poderiam, se lhes houvesse, no mínimo, uma singela dor de consciência, mandar-me avisos de forma sutil ou simulada, da desnecessidade da procura em razão da inexistência do objeto. Sem nada a saber, fico a perscrutar grotões, a focinhar lameiro, procurando o que só existe no papel, ora se isso tem cabimento, se o salário é o mesmo, mas o custo da repartição prospera! Essa revolta, contudo, já está embutida e sedimentada na rotina da minha vida, deixando aqui o registro, não de denúncia, que não sou de meter a mão em vespeiro, e sim para antecipar a V. Sª minha justificativa de eventuais demoras na consecução dos processos.

Lá fui eu, preparado às previsíveis dificuldades e exigências do percurso, em fazer muitas indagações no decorrer da viagem, mas, com um pouco de sorte, quem sabe, teria tempo de retornar à Pirapora ainda sob a luz do sol, fazer o precioso relatório a V. Sª., este ora reportado, e, ao estar efetivamente fora do horário de trabalho, beber uma cerveja nas margens do São Francisco, cuja despesa, posso garantir, não será incluída na minha prestação de contas, pois conheço as vedações contidas em regulamento, embora, se me permite o abuso de opinar, tal proibição deveria ser revista, abrindo-se exceções para o período de elevadas temperaturas e para pessoas calorentas, entre as quais me incluo.

O caminho era cansativo, parecia um labirinto, onde todos os atalhos me levavam a uma porteira fechada ao mato cerrado, porteiras a dividir matagal, fugazes lembrança de que ali um dia houve capim, houve boi e agora não existe nada, e nem poderia existir se não tem mais cerca de arame, somente o valente mourão de braúna, sem mais motivos de ali estar plantado, exceto para dar descanso ao curió, que o barulho do jipe espantou, e lá foi ele a procurar sossego nas alturas, em direção aos galhos de um enorme e solitário jequitibá, ali nascido de forma inexplicável, a dominar a densa mata de pequenas árvores retorcidas.  Não havia gente, ninguém surgia no caminho, e os únicos sinais de vida eram alguns animais desgarrados, moitas de canaviais queimados e dispersas roças de milho abandonadas.

A propósito, deixo registrado, Senhor Diretor, a minha queixa pelo jipe velho que me é destinado nas viagens, cujo ronco e tosse assustam mais a mim do que ao próprio curió, se o pássaro é abençoado com asas e não lhe traz serventia este veículo, podendo voar e ficar bem longe dessa barulheira, vantagem que não me cabe, obrigado a conviver com esses estrondos e arranhões estridentes, a provocar-me um zumbido constante nos ouvidos, e sérias preocupações de tudo se calar repentinamente e aprisionar-me em local soturno, sem meios de condução, totalmente abandonado no meio do mato.

Segundo informações que me foram passadas, não por mexerico, ou estivesse eu a bisbilhotar, tomei conhecimento da chegada ao Rio de Janeiro de certo número de veículos novos, doados pela Aliança para o Progresso, do governo americano (deixo claro que não cabe aqui qualquer conotação política, embora eu saiba dos laços familiares de V. Sª com a mais alta patente militar que ilustra a presidência de nossa autarquia). Quem sabe, a pedido de V. Sª, esse moribundo jipe, que certamente já prestou relevantes serviços durante a segunda guerra mundial, pudesse finalmente descansar, no gozo de merecida aposentadoria, talvez até, outra ideia, receber solene homenagem de despedida com hasteamento de bandeira e toque de corneta, homenagem bem a gosto dos militares, vindo em troca um daqueles carros novos, americano, sugerindo, se não estiver no limite do abuso, um hidramático e da cor verde, que muito aprecio.

(continua)

sábado, 24 de agosto de 2013

Manicômio Fiscal – O ISS (III)

Um Contador abre a porta do Plantão Fiscal da Prefeitura.
- Bom dia! Posso entrar?
- Pode entrar meu amigo! Em que posso ajudá-lo?
- Estou com uma firma nova, de marcenaria. Eu queria saber o imposto que vou pagar: ISS ou ICMS?
- Qual é o objeto social do contrato?
- Serviços de marcenaria...
- Serviços? Vai pagar o ISS!
- Mas o Fiscal da Inspetoria disse que é ICMS.
- Ora, para os Fiscais da Fazenda Estadual tudo é ICMS.
- Gozado, ele disse a mesma coisa de vocês, tudo é ISS.
- Veja só! O seu cliente não vai prestar serviços de marcenaria? Serviços são tributáveis pelo ISS!
- Ele vai fazer mesa, cadeira, armário...
- Vai fazer? Ah bom! Então é ICMS! Venda é ICMS!
- Mas ele vai fazer por encomenda! Ele não vende para qualquer um!
- Ah! Então é serviço por encomenda! Serviço é ISS!
- Mas qual é a diferença? Vender para qualquer um ou vender por encomenda, tudo não é venda?
- Não! É diferente! Quem forneceu os materiais?
- Que materiais?
- Ora, não sei... a madeira para fazer a mesa, por exemplo.
- Não sei. Acho que o cliente escolhe o tipo da madeira e o marceneiro compra.
- E põe o custo da madeira no preço do serviço, não é assim?
- Bem... acho que é.
- Então! A preponderância aí é serviço e não venda. Incide ISS!
- Mas quando ele vende para qualquer um, o procedimento não é o mesmo?
- Quando ele compra madeira e fabrica uma mesa para vender, ele assume o risco de vender ou não. Quando vender, se conseguir vender, aí então vai pagar IPI e ICMS.
- Neste caso, o problema é o risco de vender ou não vender?
- Exatamente!
- E se quem encomendou não aparecer para pegar a mesa pronta? Não existe este risco?
- Aí ele vai ficar no prejuízo e não vai pagar imposto nenhum.
- Bem, isso é muito confuso, mas, tudo bem! Em que item da lista de serviços eu enquadro a venda por encomenda?
- Pois é. Se o material for adquirido pelo marceneiro será um contrato de empreitada global. O item é 7.02 da lista. Se o material for entregue pelo encomendante, o item é 14.06.
- Mas o item 14.06 é instalação e montagem! Ele está fabricando!
- Bem, então joga no item 14.13.
- Deixa eu ver aqui na lei... Espera aí! O item 14.13 é carpintaria e serralheria! Ele é marceneiro!
- Bem, vamos fazer o seguinte: faz uma consulta por escrito e nós vamos estudar o assunto.
- Mas isso vai demorar e ele já começou a trabalhar!
- Vai jogando no 7.02 até receber a resposta!
- E se ele for multado pela Inspetoria Estadual?
- Esse é o risco! Como eu disse tudo vai depender do risco.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O Manicômio

Da série: Conversas de Botequim


- Meu grande amigo Fernandinho Taboada! Que alegria rever-te!
- Que bom encontrar-te! Só assim me livro das amarguras!
- Das amarguras eu te livro num instante... Garçom! Traga duas Weber Haus treze anos! E por favor, de corridinho!
- Treze anos?
- Pois te provo Fernandinho! Uma cachaça envelhecida treze anos em barril de carvalho e cabriúva! O néctar dos deuses!
- Pois preciso mesmo de algo assim. Estou acabrunhado e triste!
- Meu Deus! Não me vá dizer que tiveste que ir à Prefeitura pedir alguma coisa!
- Não! Desta vez a Prefeitura não é culpada. Foi a Justiça Eleitoral!
- Justiça Eleitoral? Tu pretendes ser candidato?
- Que nada! Fui à Justiça Eleitoral para trocar o meu registro. Eles estão exigindo que se faça a troca!
- Pois eu ainda não fui e nem sabia de tal exigência.
- Vai ter que ir, caso contrário não vota na próxima eleição.
- Mas eu não quero mesmo votar!
- Se não votar, paga multa, não tira passaporte, sujam o seu nome, violentam o seu passado!
- Mas não vivemos numa democracia? Vota quem quiser!
- De jeito nenhum! Todo mundo é obrigado a votar, nem que seja em branco!
- Não votar ou votar em branco não é a mesma coisa?
- Eles dizem que não! Eles querem que pelo menos tu estejas lá, para fazer fila e votar em branco.
- Espere um pouco! Vamos tomar a nossa cachaça e depois me conte os teus dissabores. Saúde!
- Barbaridade! Que coisa maravilhosa é esta?
- Não disse? E tem gente que bebe uísque! Garçom! Traga mais duas, por favor!
- Boa pedida! Mas, como estava te dizendo, fui a Justiça Eleitoral cumprir essa obrigação. Peguei senha e fiquei aguardando meia hora...
- Mas tu não agendaste a hora?
- Agendei dez dias antes! De que serve esse tal de agendamento, se ainda tenho que pegar senha e ficar aguardando na fila?
- Não tenho a mínima ideia, mas continua...
- Quando fui atendido, o sujeito mal encarado me disse que eu não votei em 2002 e tinha que pagar multa.
- E tu não votaste em 2002?
- Pois eu nunca deixei de votar! Mas eu não tenho mais aquele papelzinho de 2002. Já se passam onze anos! Eu disse ao sujeito mal encarado que se não votei, o que não acredito, a multa já prescreveu!
- E o que ele disse?
- Que não entende nada disso. Que se eu quisesse reclamar que fizesse um requerimento ao doutor juiz, dava entrada no protocolo e aguardasse uma decisão.
- Barbaridade! Que burocracia! E o que aconteceu depois?
- O sujeito mal encarado disse que eu tinha que pagar uma multa de três reais!
- Bueno! Pelo menos a multa é de valor pequeno. Tu deste os três reais a ele?
- Não pode! Eu tinha que ir a um Banco para pagar a multa de três reais!
- A tal burocracia! Gasta mais de passagem de ônibus do que de multa.
- Mas o pior não é isto! Só posso trocar o meu registro depois que pagar a multa!
- O quê? Então, tu foste lá à toa?
- É o que eu digo! Tinha que pagar e depois agendar outra data para trocar o registro!
- E pegar fila novamente?
- É o que eu digo! E perder mais um dia de trabalho!
- Barbaridade! E agora? O que vais fazer?
- Rasguei a multa e não voto mais!
- E tu vais preso?
- Não! Já passei dos setenta e não preciso mais votar!
- Por que então tanta agonia?
- Porque gosto de cumprir minhas obrigações, mas acho que os governantes não querem. Quanto mais bagunça, melhor!
- Bueno! Então esquece tudo isso e vamos brindar!
- Vamos! À Burocracia! Tim-Tim!!

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Relatório Fiscal (II)

Processo nº 42.593.313/71 - Ordem de Fiscalização nº 0217/71
Finalidade: Fiscalizar os estabelecimentos agropecuários da região de Serra Grande.

Senhor Diretor,

Logo ao chegar à cidade de Mansidão, nos contrafortes da Serra Grande, fui detido e conduzido incontinenti à cadeia pública sob a acusação de excitar, promover e estimular a inveja, conforme acusação recebida e já registrada em boletim de ocorrência, formulada por autor desconhecido. O objeto da acusação era o veículo por mim conduzido, o novíssimo jipe, tração nas quatro rodas, adquirido graças à generosa ação de Vossa Senhoria ao acolher meus insistentes e até calorosos reclamos, removendo todos os obstáculos políticos e burocráticos para atender, por que não dizer, às justas solicitações deste humilde servidor fiscal, Deus o abençoe, se me permite tamanha irreverência. 

Segundo os termos do referido boletim, a presença daquele veículo nas ruas poeirentas, de terra seca e areias pulverizadas pelo sol castigante, cercadas de casebres arruinados e corrompidos ao tempo, era causa de previsíveis acirramentos de inveja dos moradores, fato que evidenciava e caracterizava a prática do delito, a justificar a imediata detenção do infrator, tudo na forma da lei.

Por mais que tentasse argumentar minha presença passageira e a condição de servidor público federal, o policial não vacilou e sem qualquer hesitação trancafiou-me na única cela disponível da cadeia pública. Foi, também, providenciada a remoção do veículo da rua principal, sendo estacionado nos fundos da delegacia, afastado, assim, das vistas invejosas da população.

Por mais que Vossa Senhora já conheça a minha longa experiência de saber lidar com momentos imprevistos e surpreendentes, afirmo que não perdi a tranquilidade e mantive total domínio de minhas reações, por saber que uma inspirada solução seria por certo encontrada diante da denúncia registrada pela autoridade policial.  Confesso, porém, que uma densa preocupação pairou sobre os meus pensamentos quando conversei com o detento da cela vizinha, que fora condenado por trazer para a cidade uma jovem mulher, bonita de alma e saliente de corpo, com quem pretendia se casar. Por provocar inveja, fora condenado a um ano de cadeia, mais a imposição de multa pecuniária, além de receber ordem sumária de fazer retornar a moça às suas origens.

“O meu caso foi grave porque havia provas concretas e contundentes do crime”, explicou-me o condenado. “Durante a investigação a polícia apurou uma série de denúncias de pessoas assumidamente invejosas, até mesmo de homens casados, de gente velha e, imagine o senhor, até de outras mulheres. Um caso perdido, doutor”, desabafou o indivíduo, ao confessar em lágrimas o profundo arrependimento de ter causado tanto sentimento de pesar dos seus vizinhos diante de sua felicidade aparente.

Consolei o vizinho de cela, mas, é verdade, com a repugnância de estar ali, a conversar e conviver com um criminoso confesso, um desses perniciosos exemplos de incitação à inveja social, ora, prezado Diretor, nunca o meu caso se assemelharia ao dele, um mínimo, é verdade, de vaidade fortuita, uma admiração repentina quando cruzei a cidade ou no breve momento de estacionar para tomar um café e abastecer o carro. E ele não! Afrontou a todos a trazer a mulher para viver em sua companhia, por toda a vida, para engravidar aos olhos de todos, cuja gravidez o povo entenderia e imaginaria as intimidades da sua origem, a despertar, portanto, a natural cobiça, inveja e a culminar no ódio, na revolta dos desejos impossíveis de serem realizados. Não havia, sem dúvida, qualquer comparação entre os nossos casos.

Ao perceber que não encontraria solução mais simples, um agrado, uma propina ao policial, pois suas atitudes demonstravam inusitada honestidade no exercício de suas funções, apelei ao meu direito constitucional de ter a presença de um advogado (permita-me informar, Vossa Senhoria, que se houvesse a possibilidade de resolver o problema mediante a paga de uma propina, tal valor, por evidência, seria por mim mesmo custeado, não fazendo parte da prestação de contas das despesas de viagem e sobrecarregar os cofres públicos. Deixo registrada essa ressalva, porque sabemos da naturalidade cínica assumida por outros auditores em lançar tais e outras despesas pessoais na prestação de contas, e a viver, por consequência, uma vida faustosa, casas de praia, carros na garagem, circulando em boates e restaurantes, vestindo roupas finas e, até mesmo, eu soube, viagens constantes à Europa, enquanto eu, nesses lugares onde o vento retorna, muitas vezes saciando a fome comendo palma ao lado dos bodes, as despesas rigidamente controladas, pois são deles as atitudes que sempre reprovei, uma grande injustiça, apesar de não ter nada a ver com suas vidas. Fique certo, Vossa Senhoria, que eu não sou invejoso!

Mais ou menos uma hora depois chegou o advogado, de terno surrado e gravata suja e desbotada, o único advogado da cidade, aquele que provavelmente decidiria o meu destino, sem qualquer outra hipótese de solução, pelo menos por mim não imaginada.

Percebi na conversa sua grande experiência em crimes de inveja. “Temos que descaracterizar a materialidade do fato”, disse-me ele. “E é possível?” “Sim, porque a denúncia formal, até agora, é o de excitação à inveja e não propriamente o crime de estabelecer a inveja”. O perigo, segundo suas palavras, seria apresentar-se alguém e formular a queixa de ter sentido inveja. “Neste caso, será difícil sua absolvição”, conclusão que me deixou mais preocupado ainda.

“O que vamos fazer, doutor?” O advogado estabeleceu uma estratégia. “A inveja é do carro, não do senhor, pois vamos danificar o carro, evitando a criação do sentimento nas pessoas”.

Danificar o carro? Tal solução não me agradava, mas, confesso, qualquer coisa que me salvasse viria em boa hora. Fui obrigado a aceitar a solução proposta, condoído em danificar aquele valioso jipe conquistado a tamanhas dificuldades.

O advogado retirou-se para tomar algumas providências. Mais tarde, da cela ouvia-se um barulho de motor roncando, tossindo e por diversas vezes morrendo. A fumaceira expelida invadiu a cadeia com aquele cheiro de óleo e fuligem. Dava para ouvir do interior do prédio as gargalhadas de gente reunida na rua. Alguém do lado da janelinha da cela comentou: “Mas que porcaria de carro!”. Riam e debochavam.

Ao terminar a zoeira, diversas pessoas entraram no posto policial, todos querendo registrar a ausência de qualquer vestígio de inveja do carro, pelo contrário, uma grande piedade ao proprietário daquele veículo. O advogado, satisfeito, reunia as provas de que aquele veículo, de fato, não incitava a inveja no povo, denúncia anônima desprovida de qualquer confirmação material.

O juiz veio à cidade só no dia seguinte e tive de passar a noite na cela, nem banho tomado, servindo-me de café e pão, refeição oferecida pela municipalidade, sem nenhuma regalia por ser funcionário público federal, ao contrário do preso vizinho, a comer feijão de corda e macaxeira, direito reservado aos presos de condenação já transitada em julgado, uma absurda discriminação da lei, cujo teor deveria ser revisto urgentemente.  Nem um pedaço de macaxeira frita o criminoso me ofereceu, comendo lá, no seu canto, de cabeça arriada sobre o prato sustentado nos joelhos, calado e comendo, certamente satisfeito com o seu maldito arrependimento. Devia morrer apedrejado em praça pública, foi o que pensei ao engolir aquele pão mofado e duro.

Fui à presença do juiz e o advogado, com maestria e apurada técnica, apresentou todas as evidências a comprovar minha inocência, “eu nunca faria isso, excelência!” (...) “Jamais incitaria a inveja aos meus concidadãos”, foram as minhas palavras quando interrogado.

Felizmente, o juiz me absolveu, mas não deixou de cobrar custas judiciais por mim aceitas de imediato, valor que me faltará no decorrer da viagem, até de pouca importância, porém, adicionado aos honorários do advogado, justíssimos, por sinal, o montante supera as estimativas de despesas futuras, sendo, por isso, o motivo de enviar, em anexo, os comprovantes devidos, pedindo a Vossa Senhoria a gentileza de providenciar o meu ressarcimento.

A propósito, providenciei rebocar o carro até a cidade vizinha e viajei de ônibus. Tais despesas constam da prestação de contas. É o relatório.