(continuação)
3ª
e última parte:
O mais novo de aparência, que simulava
não me ver, a vaguear displicentemente o olhar pelo horizonte, fingindo estar
muito distante de tão cansativa entrevista, ordenou desdenhosamente ao mais
velho: “responda”. E o mais velho respondeu: “Não conhecemos”. Aquela resposta,
no plural, aliviou-me, eu acertara no tratamento! Resolvi insistir na conversa: “e a Fazenda
Mimosa, os senhores conhecem?”. Mais uma
vez, o mais jovem deu a ordem ao mais velho: “responda”, e o mais velho
respondeu: “fica a uns dez quilômetros adiante, mas não sabemos a condição da
estrada, talvez não dê para passar este veículo”. E apontou com a sua mão
esquerda o velho jipe. Respondi,
amavelmente: “tudo bem, eu agradeço a informação... eu não sou desta região e
estou meio perdido... eu sou da capital...”
Ao dizer essas palavras, o mais novo abriu
um largo sorriso e exclamou alegremente: “Ora! Sendo o senhor visitante do
exterior, compete-me a recepção! Peço desculpas por não ter me pronunciado
antes, pois o julgava um nativo, gente da vizinhança com quem não devo
compartilhar, cabendo a ele, em tais circunstâncias, as tarefas executivas.
Permita apresentar-me: eu sou o Rei e ele (apontando com a sua mão direita o
rosto velho) é o súdito. Por favor! Aceite a minha hospitalidade, vamos entrar
e comemorar!”.
Ele fez questão que eu ficasse ao seu
lado, ou seja, do lado direito do corpo, e acompanhei aquele estranho homem de
duas cabeças em direção a casa, enquanto ele não parava de falar e dizia ser
muito raro receber visitantes do exterior e sentia muito não ter sido
comunicado com devida antecedência, a tempo de preparar uma festiva recepção. Provavelmente,
segredou-me, mais um erro do seu súdito, um problema esses serviçais de hoje em
dia, absolutamente ineficazes. "O maior problema de qualquer Estado é
sempre o povo que o integra”, frase dita em tom mais elevado e dirigida à
cabeça do súdito que, cabisbaixo, seguia-nos inexoravelmente, como não podia
deixar de ser.
Sentamos na varanda, e o Rei, ao
dobrar e repousar o peso de sua majestosa perna direita sobre a esquerda da
plebe, disse-me solene: “meu súdito fabrica uma deliciosa cachaça, quer
experimentar?”. Aceitei, agradecido, e ele, a sorrir satisfeito, ordenou ao
outro: “traga a cachaça do Rei e as taças de cristal!”. Imediatamente, o homem de duas cabeças
dirigiu-se ao interior da casa, com o súdito de semblante decidido a realizar a
missão, e o Rei, de olhos fechados, bocejava, dando a demonstrar o tédio que
sente a nobreza ao ser obrigada a acompanhar o povo.
A cachaça era deliciosa! Eu e o Rei bebíamos, enquanto o súdito, de
cabeça baixa, não participava, em absoluto, da bebida e da conversa, aliás,
atitude que a certa quantidade de bebida consumida, eu já considerava
perfeitamente correta, afinal, se todos participassem das coisas boas da vida,
tudo seria trivial, nada poderia distingui-las como especiais, dando plena
razão à Majestade, porém, lá pela quinta taça, para minha surpresa, o Rei, já
um tanto embriagado, gritou magnânimo: “Cachaça para o povo!”. O súdito
entendeu a mensagem e correu a pegar seu copo, repetindo: “obrigado, meu Rei,
obrigado, meu Rei”, e o outro, de olhos fechados, bonachão, recostado em seu
ombro, lá foi junto, a receber os agradecimentos do seu povo.
Senhor Diretor, gostaria de deixar
registrado que não bebo, absolutamente, em serviço, conforme estabelece o
regulamento e, neste sentido, encareço relevar o pequeno delito cometido em
face da singularidade da ocasião.
O efeito da cachaça fez dissipar a
minha discrição, tornando a conversa mais informal, repletas de piadas e
gracejos, a assumir coragens talvez indevidas nas ocasiões formais, a brincar
com o súdito, que apenas sorria, gentilmente, e nada respondia. Pois foi neste
estado de embriaguez fortuita que ousei perguntar ao Rei o motivo daquela
distinção hierárquica entre eles, se, afinal, possuíam o mesmo corpo. “É a lei natural, respondeu o Rei, no Estado
sempre há de existir o líder e o liderado, o mandante e o mandado, o rei e o
súdito”, mas, insisti, "quem foi que o designou em vista da unidade
existente?". “Uma decisão que demandou tempo, disse o Rei; o início foi o
caos, o embate durou anos, eu queria comer, ele queria andar, eu queria ler,
ele dormir, nada dava certo, brigávamos o tempo todo. Decidimos, então, pela
adoção da monarquia e eu, como estou à direita, de acordo com a lei divina, fui
o escolhido”. "Não seria mais justa”,
retruquei, “a adoção da democracia, com mandatos temporários, cada um exerceria
o governo em determinado período de tempo?".
Os dois olharam-me, surpresos de
início, um breve silêncio, tempo de refletir sobre o teor da pergunta, e depois
deram gargalhadas, até mesmo o súdito que não participava dos assuntos. O Rei
respondeu: “desculpe, meu amigo, mas que ideia absurda, onde já se viu alguém
mandar e depois ser mandado? Ninguém aceita instâncias cronológicas na ordem do
poder, a autoridade não se outorga como se fosse um bem material; este é o
engodo da sua tal democracia, a classe dominante nunca perde o poder, apenas
substituem pessoas. A alternância das classes somente se realiza com
revoluções, mudança por votos é pura demagogia”. E o súdito, ainda rindo da
minha ignorância, concordava meneando sua cabeça velha e estúpida.
Nas despedidas, fui presenteado com um
garrafão da bebida, e, em retribuição, de acordo com as normas do protocolo,
ofereci a minha calculadora de bolso, o que proporcionou um grande prazer ao
Rei, a enaltecer a tecnologia do mundo exterior, e que haveria um momento, num
futuro ainda não previsível, de incluir a modernidade no seu Estado (aproveito
a oportunidade da narrativa para explicar a V. Sª. o motivo do meu pedido de
uma nova calculadora ao Almoxarifado, pedido este que solicito antecipadamente
a sua aprovação). Deixei o meu endereço e coloquei-me ao dispor de Sua
Majestade, caso necessitasse de qualquer coisa do mundo exterior.
É o relatório.
POST-SCRIPTUM – Recebi ontem uma
gentil carta do Rei, dando-me notícias do seu reino. Mandava-me, também, saudações
do seu povo, garantindo ser uma gente boa, um tanto indolente, é verdade, mas,
de natureza afável e cordata, apesar, coitada, de ser analfabeta. O que fazer
se o Estado é destro, a mão que rege é a mesma que escreve e assina, e esta
pertence a Sua Majestade?