quinta-feira, 23 de março de 2017

Velho pra dedéu!

Saí arrasado do consultório do médico, na Avenida Sete de Setembro, e fui andando até o ponto do ônibus na Rua Santa Rosa. A notícia da grave enfermidade povoava meus pensamentos. Em frente ao ponto, e diante dos meus olhos, agigantava-se a Basílica de Nossa Senhora Auxiliadora, do Colégio Salesiano. Fui sacudido por lembranças de um passado longínquo: ali estudei da idade de nove aos quatorze anos. Ao lado da Igreja, ainda está lá, desde o meu tempo, o campo de futebol dos alunos, a mesma gritaria, o barulho dos chutes, o quique da bola.

Atravessei a rua e cheguei até a grade que protege o campo. A criançada jogando. E eu me vi a jogar! Tinha treze anos, alto, magro, jogando como sempre de beque central. Resolvi chamá-lo: “Beto!”, “Beto!”. Virou-se e me viu. Franziu os olhos na tentativa de me reconhecer. Aproximou-se cauteloso. “O senhor me conhece?”, perguntou ao chegar mais próximo.

Dei um sorriso. “Claro que sim! Eu sou você no futuro, um futuro de mais de sessenta anos”. Ele arregalou os olhos: “Puxa! Quantos anos você tem?”. “Setenta e cinco”, respondi. Ele tirou os cabelos dos olhos, um gesto que eu conhecia, quando estava nervoso. “Nossa! Eu vou ficar velho pra dedéu!”. Tive que dar uma risada. “Quando você chegar à minha idade, vai querer viver ainda mais”. Olhou-me nos olhos. “O que você está fazendo aqui no meu tempo?”, perguntou. “Bem, tive que visitar um médico na Avenida Sete e vou pegar um ônibus aqui em frente”. “Você está doente?”, perguntou apreensivo. “Estou com câncer na bexiga”, respondi fingindo-me despreocupado. “Isso dói?”, perguntou baixinho. “Não! Nada sinto, pelo menos por enquanto”.

Minha resposta deixou-o mais tranquilo. E ele disse: “Ano passado quase morri!”. Dei um sorriso. “Eu sei, eu sei. Chegamos a receber a extrema-unção”. Ele me olhou espantado. “Puxa, você se lembra?”. “Lembro-me, mas não de tudo”. Parece que Beto teve uma ideia brilhante: “Olha! Você pode pedir ao Padre Geraldo a relíquia de Dom Bosco. Foi ela que me salvou... Foi ela que salvou a gente”. “Eu me lembro da relíquia. Padre Geraldo colocou-a no nosso peito durante a pior crise da enfermidade. No dia seguinte, estávamos na rua jogando bola”. Beto confirmou: “Isso mesmo! Mamãe diz que foi milagre. Pede a ele!”. Dei uma risada. “A essa altura o Padre Geraldo está ao lado de Dom Bosco”.

Ele pensou no assunto. “Sabe o que eu acho?”, disse-me o jovem Beto, “você não precisa da relíquia. Pensa que a tem no peito e já será suficiente”. Dei um sorriso irônico. “Você acha mesmo?”. Ele respondeu firme: “Acho não, tenho certeza! O que me salvou foi a confiança de que não iria morrer. Eu disse isso a papai quando ele segurava a minha mão e chorava ao meu lado. Eu cochichei no ouvido dele”. Eu não me lembrava dessa conversa com papai. "Você cochichou o quê?”. Olhou-me curioso: “Não lembra? A gente não tinha força para falar e só conseguia sussurrar, mas consegui dizer-lhe para não se preocupar, porque eu não ia morrer”.

Eu não me recordava dessa parte da história. “Como você tinha certeza se nem os médicos sabiam o mal que sofríamos e já haviam nos desenganados?”. Ele abriu um sorriso. “Sabe o que é? Foi a força de vontade de viver que nos salvou. Eu não queria morrer de jeito nenhum! Eu tive fé! Você não tem mais fé?”. Fiquei sem jeito, meio desconsertado. “Sabe o que é? A gente muda com a idade...”.


A garotada no campo gritava o meu nome para voltar ao jogo. Disse-lhe: “Vai jogar, não deixe seus amigos esperando”. E ele me olhou com os olhos tristes. “Eu vou, mas fique certo que eu, assim como não quis morrer com doze, não vou querer morrer com setenta e cinco anos! Trate de dar um jeito nessa sua falta de fé. Faça de conta que a relíquia de Dom Bosco ainda está no seu peito, pois, para mim, ela ainda está aqui, no meu coração”. E batendo com a mão direita no peito, Beto correu para o campo. 

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