domingo, 20 de novembro de 2016

O exercício da fiscalização – lenda urbana

Apranagildo Vicentão, lídimo Fiscal de Tributos do Município de Bolinha, cumpridor fiel da letra da lei, exigiu ser ordenado a vistoriar as contas de um Hospital Psiquiátrico, cuja inadimplência tributária era avassaladora e vergonhosa, tendo aquele manicômio, como acionistas majoritários, pessoas poderosas, da mais alta lavra, todas agraciadas de comendas honoríficas e gozando das regalias dos arrolados em diversas operações policiais e judiciais, tudo a abrilhantar os seus currículos, inclusive seus notórios conhecimentos de lavagem de dinheiro.
  
Os chefes receberam com surpresa e reticência o pedido do servidor, haja vista a poderosa organização a ser enfrentada, mas, diante das ameaças do Fiscal em denunciar ao Ministério Público a indecente omissão do poder fiscalizatório, resolveram aceitar o pedido, apesar das inúmeras ressalvas e advertências.

Foi convencido, porém, por seus chefes, a seguir em missão acompanhado por um séquito policial. E, assim, Apranagildo foi conduzido durante o percurso em viatura policial de sirenes abertas e luzes intermitentes. No interior do veículo, já organizava o papelório da formalização do levantamento fiscal e alardeava aos policiais acompanhantes a importância do seu árduo trabalho.

Ao ingressar no pátio do estabelecimento hospitalar, foi recepcionado por enfermeiros protocolares que o conduziram para o interior do prédio numa maca dobrável de rodas, antes de vesti-lo com uma camisa de força. Aquela calorosa recepção fez o Fiscal sentir-se lisonjeado, a pedir aos funcionários da casa que deixassem, pelo menos, suas mãos soltas e pudesse deste modo lavrar as ocorrências e respectivas autuações.

No interior do Hospital, Apranagildo foi recebido por um médico de plantão que imediatamente prescreveu a aplicação de lítio, medicamento antipsicótico para estabilização do seu humor. E a levar em conta a insistência do Fiscal de receber e examinar os documentos do Hospital, o médico reforçou o tratamento com o uso ácido valpróico, carbamazepina, lamotrigina e outras drogas antialucinógenas e antidepressivas.

Ofereceram ao Fiscal, como local de trabalho, um pequeno quarto, decorado com acolchoados nas paredes e no teto, onde, enfim, Apranagildo pôs-se a trabalhar no preenchimento de suas notificações e intimações, que eram despachadas por baixo da porta forrada e sempre trancada a ferro e aço.

Por não ter recebido os documentos requeridos, o Fiscal arbitrou o imposto e efetuou o lançamento devido, sem antes tomar o cuidado de notificar o contribuinte. Tudo encaminhado protocolarmente por debaixo da porta, nos termos da lei em vigor.

E Apranagildo ainda lá está, a discutir com os internos as questões complexas do direito tributário, do princípio da legalidade, do direito de ir e vir e suas avenças. O parecer médico vetou a sua saída do Hospital, mesmo com o uso de tornozeleiras. Considerou o Fiscal um perigo para a sociedade. 

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