terça-feira, 24 de novembro de 2015

O integérrimo Carvalhão


“exagerar não prejudica” (Umberto Eco)

O meu amigo Carvalhão estava desconsolado. “Você viu? O aluno espancou a professora porque ela mandou que ele desligasse o celular na sala de aula. Aonde chegamos, cara?”. Enquanto ele falava o avião sacolejava na turbulência. Concentrado nas sacudidas, dei uma resposta evasiva e idiota: “Não há mais respeito, a sociedade avacalhou-se”.

Ele não prestou atenção ao meu comentário. E continuou: “O ensino obrigatório devia ser banido! O Estado deveria manter escola só para quem realmente deseja aprender”. Carvalhão conseguiu despertar a minha atenção. “Uma tese interessante, mas como saberíamos quem quer realmente aprender?”. Ele respondeu rapidamente: “Ora, expulsando todos os alunos que não acompanham as aulas, os indisciplinados, os reprovados, os parvos, enfim, promovendo uma limpeza ética total nas escolas! Só fica quem quer estudar!”.

Dei uma risadinha. “Deste modo, acho que sobrarão poucos”. Ele bateu a mão na minha perna. “Adivinhão! Pois o objetivo é esse! O Estado não teria tantas despesas com a educação, uma meia dúzia de escolas bastaria”. Tentei contestar: “Mas, Carvalhão, desse jeito a maioria da sociedade seria analfabeta!”. Ele fuzilou-me com os olhos: “E já não é? Uma cambada que só aprendeu a escrever o nome e alguns palavrões. Um bando de néscios! Que fiquem por aí morrendo à míngua!”.

Carvalhão não é fácil. É tão radical de direita que pra ele Hitler era comunista. Tentei ponderar: “Se fosse assim, a violência imperaria”. Que frase infeliz a minha. Ele aproveitou: “Mas já não impera? Ou você quer mais violência ainda? Vamos instalar um violenciômetro! Uma máquina para calcular a violência?. Cara! A solução contra a violência é a pena de morte! Pena de morte sumária, sem delongas, sem embargos, sem delações! A justiça tem que ser rápida: roubou, julgou e matou! Simples assim!”.

Percebi que aquela viagem seria longa demais. Por que fui sentar-me logo ao lado de Carvalhão? Inventei algo para dizer: “Você está esquecendo que a falta de educação gera desemprego, fome e doença. A saúde pública ficaria abarrotada de gente”. Ele franziu as sobrancelhas. “Saúde Pública? Que saúde pública? Não deveria existir saúde pública, esse monte de postos de saúde para atender essa multidão que finge estar doente! Esse pessoal vai ao posto de saúde porque não tem mais nada pra fazer”.

Fiquei perplexo. “Você acabaria com o atendimento médico?”. Ele abanou a cabeça. “Não! Mas atenderia somente quem estivesse realmente doente. Se alguém fosse lá só pra fugir do trabalho, ou pra dar um passeio, os médicos injetariam um arsênico no malandro que se finge de doente! Se fosse assim, nunca mais haveria fila em posto de saúde e hospital!”.

Quando o avião pousou, percebi que uns dois passageiros próximos prestavam atenção ao discurso de Carvalhão, e gesticulavam a cabeça a concordar com ele. Senti um friozinho na barriga, mas deve ter sido por causa da batida brusca no solo, e não por outras preocupações.


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