sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Tumulto na Comunidade


O Posto de Saúde da comunidade foi inaugurado com pompa e circunstância. Foguetório, trio elétrico, passistas de escola de samba e um mundo de autoridades. A comunidade em peso foi lá participar da festa, afinal, uma novidade não se desperdiça, ainda mais que agora é possível gravar o capítulo da novela e assistir depois.


Dia seguinte, o posto estava cheio de gente. Doentes, mais ou menos doentes, sadios e mais ou menos sadios, todos foram ao posto para serem atendidos e admirarem o prédio novo. Os azulejos brancos e novinhos das paredes já estavam repletos de papéis colados, dando avisos escritos a mão: vacinas pra lá, remédios pra cá, idosos à direita, crianças à esquerda, não fume, uma infinidade de valiosas informações grudadas com cola ou fitas adesivas, que ninguém lia. Todos queriam falar na recepção, onde atendentes desesperadas procuravam atender a todos. Uma festa!


Zeca do Peixe, com seus oitenta anos, lá estava também, querendo ser atendido por um médico qualquer. Depois de duas horas de espera, o que não o incomodou, pois estava em boa conversa com o seu Broa, foi atendido por um médico cubano. Com certa dificuldade de comunicação, conseguiu, enfim, explicar ao médico que ele nada sentia de ruim, sintoma que o preocupava, porque homem de oitenta anos tem que sofrer de alguma coisa, não é natural um velho não contrair uma doença, não ter uma dorzinha aqui ou ali, essa falta de problemas o incomodava muito.

O cubano receitou uma caminhada diária, era preciso fazer algum exercício. Zeca do Peixe saiu aborrecido da consulta, onde já se viu médico não receitar nenhum remédio, ainda por cima nem sabe falar direito, “parece o japonês do pastel”. Seu Broa meneou a cabeça concordando. De qualquer forma saiu do posto e foi caminhar no calçadão da praia. Mas, depois de alguns passos, não gostou de caminhar e resolveu correr. E depois de uma corrida de uns quinhentos metros sentiu falta de ar e caiu desmaiado. Os bons samaritanos acudiram e o levaram depressa ao posto de saúde. Já chegou morto, infarto bravo.

A morte do Zeca do Peixe causou perplexidade, comoção e revolta, nesta ordem. Todos que estavam no posto de saúde tomaram conhecimento da triste notícia e o murmurinho inicial transformou-se em gritaria. Discursos acalorados ressoavam nos corredores do posto. “O culpado foi esse médico cubano!”, gritou Índio das Verduras sob os uivos da multidão. O Henheco, eletricista comunista, vociferou: “O posto, em vez de trazer saúde, trouxe a morte para a comunidade”.

Começou o quebra-quebra e a perseguição ao cubano. O coitado do médico corria como louco, fugindo da turba até levar uma cadeirada de rodas nas costas e tombar no corredor. Quem o derrubou foi a dona BPereira que passeava pelo posto na cadeira de rodas que pegou no almoxarifado. Dona BPereira estava grávida pela vigésima terceira vez, mas ainda forte como um touro.

A segurança conseguiu resgatar o que sobrou do médico e o levou para destino ignorado na ambulância do posto de saúde. Tudo ficou destruído. Um candidato a Deputado Estadual prometeu a reconstrução do posto e garantiu não realocar médicos cubanos. A turma foi embora já na expectativa de uma nova festa de inauguração. Cada um levava um santinho com o número do candidato.

Nenhum comentário:

Postar um comentário