domingo, 3 de março de 2013

O Empresário e o Alvará

Longarino Cata-Bagulho foi eleito prefeito com o apoio logístico do empresário Mergulhão, tido e havido como o Rei da Noite por suas monumentais produções artísticas nas praças da cidade, financiadas pelo erário público e recebimento de recursos provenientes da propaganda do comércio local. Mergulhão é também conhecido por circular nas ruas citadinas em enorme camionete dotada de possantes aparelhos de som, a tocar em volume estridente tudo que ele entende por música, acompanhada de corais sonoros ladrados por cães, zunidos de jumentos, mugidos das vacas e gritaria reclamatória dos humanos, a criar, assim, espetacular cacofonia noturna, o que lhe proporciona radiante felicidade, contrapondo-se ao desespero geral.

O objetivo de Mergulhão, ao investir na campanha do oposicionista Longarino Cata-Bagulho, é de ampliar os seus negócios empresariais e inaugurar a maior casa de show da cidade, sendo o superlativo de mero efeito publicitário, se a cidade não possui qualquer estabelecimento similar, localizada justamente ao lado da Igreja Salvados de Pecados, cujo titular e pastor era o prefeito anterior que recusava sistematicamente a liberar o alvará, salvo-conduto necessário ao exercício da atividade, em vista da concorrência de gente e de barulho, de ressonância imprevisível e perspectivas alarmantes.

A vitória de Longarino abriu as comportas das licenciosidades, aqui entendidas como um fluxo mais fluente de produção de licenças municipais, uma delas imediatamente requerida pelo empresário Mergulhão com vistas a abrir a porta da casa de show, porta propositalmente no singular, pois uma só seria suficiente a impedir os fregueses de práticas insultuosas de fugirem sem pagar as contas, reduzindo os custos de zeladoria, vigilância e de despesas na confecção de porteiras e dos letreiros correspondentes.

O novel prefeito, no desejo de logo quitar os compromissos assumidos em período pré-eleitoral, ordenou ao único fiscal da municipalidade, o senhor Ya’qub, mais conhecido por Ipissilone, se todos que o conheciam receavam dizer o seu verdadeiro nome e claudicar na pronúncia, nome, aliás, escolhido por seu pai, que Deus o tenha, o único admirador conhecido do soberano almoáda que derrotou as tropas de Afonso VIII de Castela, que se entenda neste exemplo as idiossincrasias das pessoas, cada uma com os seus mistérios e perplexidades. Acontece que Ipissilone era um verdadeiro nestor, experiente nas coisas públicas e diligente no exercício do fazer, recusando-se a assinar o alvará enquanto não cumpridas as exigências posturais de segurança, já indicadas no procedimento administrativo transitado e guardado em suas gavetas.

A recusa indignou o prefeito Longarino, ora, que desfeita é essa, se sou eu o mandatário da cidade e todos me devem obediência, e vem um rafado desse, um reles servil, a negar praticidade às minhas ordens, já vejo que muita coisa nesta prefeitura terá de mudar. E no primeiro ato de reforma administrativa mandou o velho Ipissilone para a beira da rodovia federal e contar os veículos passantes, o número de carros de passeio, camionetes, caminhões e ônibus, tudo anotado em papel oficial durante uma semana, a fim de resolver de uma vez por todas o resultado de antiga aposta feita na mesa do bar, aposta sem solução se ninguém sabia a resposta certa, quantos veículos circulam na rodovia. E na ausência de Ipissilone o próprio prefeito mandou pegar o processo e assinou o alvará.

Mergulhão caprichou em pompa e circunstância a inauguração, trazendo a banda Cangote Fino lá da capital, iluminando feericamente a frente da casa e escurecendo o interior com luzes negras e projetores a laser, uma escuridão total a permitir que homens feios e mulheres sem graça tivessem, também, o direito de conseguir um par na dança, prova maior do espírito democrático do empresário, a contar ainda com um barulho infernal que impedisse qualquer tentativa de iniciar um diálogo, um bate-papo informal, a evitar, assim, a vergonha dos idiotas presentes, e são muitos os idiotas presentes nessas baladas, que não sabem conversar ou sequer construir uma frase, tudo assim a enaltecer o espírito público de Mergulhão na defesa do princípio da isonomia.

E foi nessa algazarra que explodiu uma lâmpada e as chamas se alastraram, o fogo pegando nas cortinas e no telhado de madeira, a corrida desesperada da freguesia, a zeladoria exigindo a apresentação dos papeizinhos chamados de comanda, até que um freguês mais enfezado enfiou duas balas na cara do coitado do segurança, dando-se de imediato por liberada a saída de todos. Veio o Bombeiro fazer o rescaldo, a polícia para indiciar alguém, sobrou para o senhor Ya’qub, mais conhecido por Ipissilone, que, em vez de estar fiscalizando a boate, foi visto lá na beira da rodovia, em plena madrugada, cochilando numa rede, com várias folhas de papel oficial empilhadas no chão, e com todo jeito de estar contando as estrelas do céu, provavelmente enlouqueceu o pobre fiscal.

2 comentários:

  1. Muito bom!!! É por ai mesmo que as coisas acontecem. KKKKK

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  2. Meu grande amigo, Cironei,
    Não tenho dúvida que temos espalhados pelo Brasil muitos Fiscais Ypissilone, que acabam sofrendo as consequências dos malfeitos provocados pelos gestores.

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