Longarino Cata-Bagulho foi eleito prefeito com o apoio logístico do empresário Mergulhão, tido e havido como o Rei da Noite por suas monumentais produções artísticas nas praças da cidade, financiadas pelo erário público e recebimento de recursos provenientes da propaganda do comércio local. Mergulhão é também conhecido por circular nas ruas citadinas em enorme camionete dotada de possantes aparelhos de som, a tocar em volume estridente tudo que ele entende por música, acompanhada de corais sonoros ladrados por cães, zunidos de jumentos, mugidos das vacas e gritaria reclamatória dos humanos, a criar, assim, espetacular cacofonia noturna, o que lhe proporciona radiante felicidade, contrapondo-se ao desespero geral.
O objetivo de Mergulhão, ao investir na campanha do oposicionista Longarino Cata-Bagulho, é de ampliar os seus negócios empresariais e inaugurar a maior casa de show da cidade, sendo o superlativo de mero efeito publicitário, se a cidade não possui qualquer estabelecimento similar, localizada justamente ao lado da Igreja Salvados de Pecados, cujo titular e pastor era o prefeito anterior que recusava sistematicamente a liberar o alvará, salvo-conduto necessário ao exercício da atividade, em vista da concorrência de gente e de barulho, de ressonância imprevisível e perspectivas alarmantes.
A vitória de Longarino abriu as comportas das licenciosidades, aqui entendidas como um fluxo mais fluente de produção de licenças municipais, uma delas imediatamente requerida pelo empresário Mergulhão com vistas a abrir a porta da casa de show, porta propositalmente no singular, pois uma só seria suficiente a impedir os fregueses de práticas insultuosas de fugirem sem pagar as contas, reduzindo os custos de zeladoria, vigilância e de despesas na confecção de porteiras e dos letreiros correspondentes.
O novel prefeito, no desejo de logo quitar os compromissos assumidos em período pré-eleitoral, ordenou ao único fiscal da municipalidade, o senhor Ya’qub, mais conhecido por Ipissilone, se todos que o conheciam receavam dizer o seu verdadeiro nome e claudicar na pronúncia, nome, aliás, escolhido por seu pai, que Deus o tenha, o único admirador conhecido do soberano almoáda que derrotou as tropas de Afonso VIII de Castela, que se entenda neste exemplo as idiossincrasias das pessoas, cada uma com os seus mistérios e perplexidades. Acontece que Ipissilone era um verdadeiro nestor, experiente nas coisas públicas e diligente no exercício do fazer, recusando-se a assinar o alvará enquanto não cumpridas as exigências posturais de segurança, já indicadas no procedimento administrativo transitado e guardado em suas gavetas.
A recusa indignou o prefeito Longarino, ora, que desfeita é essa, se sou eu o mandatário da cidade e todos me devem obediência, e vem um rafado desse, um reles servil, a negar praticidade às minhas ordens, já vejo que muita coisa nesta prefeitura terá de mudar. E no primeiro ato de reforma administrativa mandou o velho Ipissilone para a beira da rodovia federal e contar os veículos passantes, o número de carros de passeio, camionetes, caminhões e ônibus, tudo anotado em papel oficial durante uma semana, a fim de resolver de uma vez por todas o resultado de antiga aposta feita na mesa do bar, aposta sem solução se ninguém sabia a resposta certa, quantos veículos circulam na rodovia. E na ausência de Ipissilone o próprio prefeito mandou pegar o processo e assinou o alvará.
Mergulhão caprichou em pompa e circunstância a inauguração, trazendo a banda Cangote Fino lá da capital, iluminando feericamente a frente da casa e escurecendo o interior com luzes negras e projetores a laser, uma escuridão total a permitir que homens feios e mulheres sem graça tivessem, também, o direito de conseguir um par na dança, prova maior do espírito democrático do empresário, a contar ainda com um barulho infernal que impedisse qualquer tentativa de iniciar um diálogo, um bate-papo informal, a evitar, assim, a vergonha dos idiotas presentes, e são muitos os idiotas presentes nessas baladas, que não sabem conversar ou sequer construir uma frase, tudo assim a enaltecer o espírito público de Mergulhão na defesa do princípio da isonomia.
E foi nessa algazarra que explodiu uma lâmpada e as chamas se alastraram, o fogo pegando nas cortinas e no telhado de madeira, a corrida desesperada da freguesia, a zeladoria exigindo a apresentação dos papeizinhos chamados de comanda, até que um freguês mais enfezado enfiou duas balas na cara do coitado do segurança, dando-se de imediato por liberada a saída de todos. Veio o Bombeiro fazer o rescaldo, a polícia para indiciar alguém, sobrou para o senhor Ya’qub, mais conhecido por Ipissilone, que, em vez de estar fiscalizando a boate, foi visto lá na beira da rodovia, em plena madrugada, cochilando numa rede, com várias folhas de papel oficial empilhadas no chão, e com todo jeito de estar contando as estrelas do céu, provavelmente enlouqueceu o pobre fiscal.
Muito bom!!! É por ai mesmo que as coisas acontecem. KKKKK
ResponderExcluirMeu grande amigo, Cironei,
ResponderExcluirNão tenho dúvida que temos espalhados pelo Brasil muitos Fiscais Ypissilone, que acabam sofrendo as consequências dos malfeitos provocados pelos gestores.