Cantilícia Sapucaia saiu de casa rumo ao trabalho às seis horas em ponto, como habitualmente fazia nos dias úteis, depois de organizar a merenda dos dois filhos, acordá-los e fiscalizar suas abluções matinais, passar a roupa do marido e expulsá-lo da cama para arrumá-la, enquanto enfiava um pão na boca e carregava a caneca de café. Vestia a roupa de sempre, portava a bolsa de sempre, o inexplicável entusiasmo e energia de sempre.
Greve de ônibus era a novidade daquele dia, foi seguindo a pé até a estação do trem, atraso que o patrão devia desconsiderar se a culpa não lhe cabia, atraso não constava de sua ficha, tinha certeza, além do fato de que o patrão sempre perdoava os frequentes atrasos daquela sirigaita, a tal de Dorinha, a circular na repartição quase nua, a saia curta de modo a mostrar a calcinha e fomentar o apetite dos homens, tenho certeza que o patrão já passou nos cobres a mulherzinha, mas dizem que ele não é chegado, sei lá, não me meto nessas fofocas.
Estação entupida de gente, na base do empurra-empurra, não há ordem, não há fila, todo mundo se atropelando, tem gente entrando por um buraco no muro, vou nessa também, tem que pular o muro, é muro baixo, mas a saia atrapalha, tenho que comprar uma calça comprida, o marido reclama, diz que tenho uma bunda grande, tudo que é homem vai ficar olhando, ora, que se dane que olhem se vou dar confiança a esses idiotas, sou mulher de respeito, mãe de dois filhos, se eu estivesse de calça comprida não aconteceria isso, a saia ficou presa, pronto! Rasgou a saia, a minha favorita! Vou chegar esfarrapada na repartição, você está rindo de quê, seu moleque!
Cantilícia Sapucaia conseguiu entrar no trem, com a roupa rasgada, pernas lanhadas e mãos sujas de segurar no muro e ao subir na plataforma, porém, sem desgrudar da bolsa a tiracolo. Trem apinhado, calor insuportável, o cheiro do suor no ar rarefeito, Cantilícia seguia firme, segurando-se no ferro do vagão, ou melhor, grudada no ferro que já lhe marcava a testa.
Final de viagem seguiu a pé, as calçadas esburacadas e poças de lama da chuva da noite anterior, correu para atravessar a avenida, pois os carros ao longe a avistaram e logo vinham em disparada para alcançá-la antes que se refugiasse na calçada. Uma pequena poça estava no seu caminho, parecia raso no asfalto, por certo um pequeno declive na pavimentação defeituosa, mas, na verdade, a água turva escondia um buraco tanto profundo, onde o pé de Cantilícia foi alojar-se e ser a causa da queda pesada do seu corpo, oportunidade logo aproveitada pelos carros a passarem em carreata por cima dela.
Após alguns segundos de desmaio, Cantilícia recupera os sentidos e geme de dor, o sangue se alastrando no asfalto molhado, as pessoas fazendo rodinha, os carros buzinando exigindo passagem, um jovem aproveita a confusão e foge com a bolsa, alguém telefona à polícia, dá ocupado, alguém telefona ao bombeiro, ninguém atende, o alguém desiste, já cumpriu o papel de bom samaritano, é melhor ir embora, pois tem muita coisa a fazer, um carro da polícia se aproxima, alguém viu o carro que atropelou? Ninguém viu nada, vou fazer a ocorrência, não sei se a perícia vem, qual é o nome dela? Ninguém sabe, não tem identificação, acho que um garoto fugiu com a bolsa, você tem certeza? Não senhor, não quero me meter em confusão. Acho que ela morreu, chama no rádio o bombeiro, vamos dispersar, gente, o trânsito está parado!
No dia seguinte, o jornal publicou: “Moradora de rua morre atropelada”
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