segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Violência na comunidade

Aqui na comunidade, novidades e boatos nascem na banca de jornais do Miranda, e dali seus efeitos são irradiados para todos os recantos com um crescimento constante de intensidade, a depender do entusiasmo dos porta-vozes e interlocutores. E, às vezes, um fenômeno extraordinário acontece: uma mesma notícia sai da banca de jornais e, depois, lá retorna em nova versão, com mais riqueza de detalhes e informações até então desconhecidas.

Como de costume, após caminhar na praia fui ao Miranda à cata de notícias. Um grupo já estava reunido a ler os jornais presos na banca, com alguns comentários, lá e cá, a maioria relacionada com os jogos do último fim de semana. Noticiário político ninguém comenta, tão pouco o cansativo mensalão, assunto desagradável e por todos desconhecido.

Foi Seu Broa, empresário do ramo da reciclagem e sabedor de novidades em vista de suas funções de catar latinhas nos lixos das casas, quem deu a notícia. Sem olhar para ninguém e de olhos fixados no jornal, disse em voz alta para que todos ouvissem: “Uma casa da Rua 12 foi roubada”.

Seguiu-se um silêncio de alguns segundos, necessário para que todos absorvessem o sentido da notícia. Seu Broa reiniciou: “foi na casa do Nestor”. Nestor é mecânico, consertador de carro de qualquer marca, só não cuida de hidramático. “A casa tava trancada?”, perguntou Lilico da Mercearia. Seu Broa respondeu: “O Nestor contou que a porta não tem tranca, ele perdeu a chave há muito tempo. Ele só encosta pro cachorro não entrar”.

Os presentes pensaram em suas casas, a maioria não tranca a porta, é falta de educação, como ensinou dona Berga, viúva de um sujeito que morreu de cirrose uns dez anos atrás. Dona Berga é muito respeitada na comunidade, porque fala enrolado e é russa. Aliás, aqui todos os estrangeiros são russos, inclusive japoneses, fica mais fácil o entendimento.

“Roubaram muita coisa?”, perguntei ao Seu Broa. “O Nestor disse ao cabo Miguel, vocês conhecem, lá da DPO, que só levaram o liquidificador e umas laranjas que estavam na geladeira”, respondeu. “Vai ver o ladrão queria fazer um suco”, comentou Cubicheque, do Açougue, mais conhecido pelo apelido Cubinho. Ninguém riu, o assunto era sério. Seu Broa prosseguiu: “O Nestor tinha saído com a família, foi visitar um parente na Baixada. Foi naquele Monza que ele tem. Quando voltou, a porta estava encostada, direitinho, mas deu falta do liquidificador. Depois, sua mulher disse que as laranjas tinham sumido”.

“Não levaram mais nada?”, perguntou o pedreiro Walmir. Seu Broa, alvo das atenções gerais naquela manhã, respondeu: “Nada, nada, não levaram o fogão, a geladeira, a televisão... Bem verdade que a única coisa nova era o liquidificador. Eles compraram no mês passado”.

Lilico lembrou-se de algo importante: “Ih, gente! Uma semana atrás a mulher do Nestor teve uma baita discussão lá na mercearia com uma vizinha, não vou dizer o nome, que reclamou da zoeira do liquidificador. A mulher do Nestor tem mania de acordar de madrugada e fazer vitamina para as crianças. Foi uma discussão danada! A vizinha reclamava do barulho!”.

Foram segundos de silêncio diante daquele grave depoimento do Lilico. Contudo, sentiu-se no ar o alívio de todos, talvez não fosse nada de ladrão. Passado o silêncio, Miranda disse em voz baixa: “Gente, acho melhor não espalhar esse negócio de discussão com vizinha. Vamos deixar que pensem que foi um ladrão”. “Por quê?”, perguntei.

E Miranda explicou: “Ora, doutor, a nossa comunidade é muito atrasada! O senhor está vendo o exemplo agora? Nem político vem aqui fazer campanha! Aqui não tem quadrilha, não tem roubo de carro, não tem sequestro, não tem esse negócio de tráfico, não tem tiroteio, aqui não acontece nada de importante!! Essa notícia de roubo pode ser o início de uma nova era, vai sair nos jornais, na televisão, vamos ser notícia! Quem sabe até instalem uma polícia pacificadora aqui, já imaginou?”.

E percebendo que eu ainda estava relutante, arrematou: “Doutor, com a polícia pacificadora talvez até instalem um teleférico horizontal, ou uma escada rolante na praia, para os idosos que os médicos obrigam a caminhar”.

Essa ideia já me deixou mais animado. O Miranda é muito persuasivo.

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