Saí arrasado do
consultório do médico, na Avenida Sete de Setembro, e fui andando até o ponto
do ônibus na Rua Santa Rosa. A notícia da grave enfermidade povoava meus
pensamentos. Em frente ao ponto, e diante dos meus olhos, agigantava-se a
Basílica de Nossa Senhora Auxiliadora, do Colégio Salesiano. Fui sacudido por
lembranças de um passado longínquo: ali estudei da idade de nove aos quatorze
anos. Ao lado da Igreja, ainda está lá, desde o meu tempo, o campo de futebol
dos alunos, a mesma gritaria, o barulho dos chutes, o quique da bola.
Atravessei a
rua e cheguei até a grade que protege o campo. A criançada jogando. E eu me vi
a jogar! Tinha treze anos, alto, magro, jogando como sempre de beque central.
Resolvi chamá-lo: “Beto!”, “Beto!”. Virou-se e me viu. Franziu os olhos na
tentativa de me reconhecer. Aproximou-se cauteloso. “O senhor me conhece?”,
perguntou ao chegar mais próximo.
Dei um
sorriso. “Claro que sim! Eu sou você no futuro, um futuro de mais de sessenta
anos”. Ele arregalou os olhos: “Puxa! Quantos anos você tem?”. “Setenta e
cinco”, respondi. Ele tirou os cabelos dos olhos, um gesto que eu conhecia,
quando estava nervoso. “Nossa! Eu vou ficar velho pra dedéu!”. Tive que dar uma
risada. “Quando você chegar à minha idade, vai querer viver ainda mais”.
Olhou-me nos olhos. “O que você está fazendo aqui no meu tempo?”, perguntou.
“Bem, tive que visitar um médico na Avenida Sete e vou pegar um ônibus aqui em
frente”. “Você está doente?”, perguntou apreensivo. “Estou com câncer na
bexiga”, respondi fingindo-me despreocupado. “Isso dói?”, perguntou baixinho. “Não!
Nada sinto, pelo menos por enquanto”.
Minha resposta
deixou-o mais tranquilo. E ele disse: “Ano passado quase morri!”. Dei um
sorriso. “Eu sei, eu sei. Chegamos a receber a extrema-unção”. Ele me olhou
espantado. “Puxa, você se lembra?”. “Lembro-me, mas não de tudo”. Parece que
Beto teve uma ideia brilhante: “Olha! Você pode pedir ao Padre Geraldo a
relíquia de Dom Bosco. Foi ela que me salvou... Foi ela que salvou a gente”. “Eu
me lembro da relíquia. Padre Geraldo colocou-a no nosso peito durante a pior
crise da enfermidade. No dia seguinte, estávamos na rua jogando bola”. Beto
confirmou: “Isso mesmo! Mamãe diz que foi milagre. Pede a ele!”. Dei uma
risada. “A essa altura o Padre Geraldo está ao lado de Dom Bosco”.
Ele pensou no
assunto. “Sabe o que eu acho?”, disse-me o jovem Beto, “você não precisa da
relíquia. Pensa que a tem no peito e já será suficiente”. Dei um sorriso
irônico. “Você acha mesmo?”. Ele respondeu firme: “Acho não, tenho certeza! O
que me salvou foi a confiança de que não iria morrer. Eu disse isso a papai
quando ele segurava a minha mão e chorava ao meu lado. Eu cochichei no ouvido
dele”. Eu não me lembrava dessa conversa com papai. "Você cochichou o quê?”.
Olhou-me curioso: “Não lembra? A gente não tinha força para falar e só
conseguia sussurrar, mas consegui dizer-lhe para não se preocupar, porque eu
não ia morrer”.
Eu não me
recordava dessa parte da história. “Como você tinha certeza se nem os médicos
sabiam o mal que sofríamos e já haviam nos desenganados?”. Ele abriu um
sorriso. “Sabe o que é? Foi a força de vontade de viver que nos salvou. Eu não
queria morrer de jeito nenhum! Eu tive fé! Você não tem mais fé?”. Fiquei sem
jeito, meio desconsertado. “Sabe o que é? A gente muda com a idade...”.
A garotada no
campo gritava o meu nome para voltar ao jogo. Disse-lhe: “Vai jogar, não deixe
seus amigos esperando”. E ele me olhou com os olhos tristes. “Eu vou, mas fique
certo que eu, assim como não quis morrer com doze, não vou querer morrer com
setenta e cinco anos! Trate de dar um jeito nessa sua falta de fé. Faça de
conta que a relíquia de Dom Bosco ainda está no seu peito, pois, para mim, ela
ainda está aqui, no meu coração”. E batendo com a mão direita no peito, Beto
correu para o campo.