segunda-feira, 20 de junho de 2016

O sobrinho

A sala estava em silêncio fúnebre. Os três senhores, cada um com o seu copo de uísque nas mãos, olhavam, pela janela envidraçada, a cidade anoitecida lá embaixo, esfumaçada, estática, como um cartão postal falso e artificial.

Depois de um longo silêncio, um dos senhores resmungou: “nenhum de nós poderá assumir, esta é a verdade dos fatos”. Outro senhor depositou o copo na mesa e comentou: “Não adianta chorar o leite derramado, fizemos o que tínhamos que fazer naquela época”. E o terceiro, depois de dar um gole na sua bebida: “Era pegar ou largar, aceitar ou sair do mercado”.

Os três se afastaram da janela e sentaram-se nas poltronas. Um deles disse em voz calma e moderada: “Afinal, quem tocará a empresa?”. Os seus olhares não se cruzavam, não tinham coragem de se encarar. Olhavam para as suas próprias mãos cruzadas no colo, ou a alisar os dedos no copo da bebida.

“O seu filho também está queimado?”, perguntou um deles, dirigindo-se a quem fez a pergunta. Este balançou a cabeça em desalento: “Também está, assim como os seus, assim como o neto dele. Nem pensar nos membros das nossas famílias”. “E nem nos diretores, essa corja de delatores”, completou o avô.

O terceiro senhor olhou para o teto e suspirou. “Tenho um sobrinho, por parte da mulher. Engenheiro, ele é dono de uma pequena empresa de reformas de prédios”. O senhor que ainda estava com o copo nas mãos levantou as sobrancelhas: “E você nunca o convidou para trabalhar com a gente?”. O outro alargou os ombros, espreguiçando-se: “Não! Apesar de ser sobrinho é um cara meio antipático e turrão”. E o outro perguntou: “Mas, pelo menos, é um cara competente?”. O tio esboçou um sorriso: “Você já viu um pobretão ser competente? Vive lá, de suas obrinhas, dirigindo uma fiorino, trabalhando da manhã à noite, morando numa casinha apertada, filho em colégio público, um típico perdedor”.

O terceiro curvou-se na poltrona: “Mas tem ficha limpa, não tem?” O tio deu uma risada: “Claro que tem! Nunca teve qualquer oportunidade naquela vida medíocre que leva!”. “Oportunidade de sujar-se?”, perguntou o outro. O tio deu uma golada no uísque, foi até a mesa e completou outra dose da garrafa. “Quem não assume riscos não tem futuro. Foi assim com a gente!”. “E agora estamos ferrados!”, disse o terceiro.

“Converse com o seu sobrinho, talvez ele aceite”. O tio olhou o outro de forma zombeteira: “Se ele aceitar, o que duvido, os negócios passarão a ser preto no branco! Vamos quebrar!”. O outro se levantou para repetir a dose. “Talvez não, nós nunca tentamos, e, pelo menos, teremos uma ficha limpa na presidência”. E o terceiro, também já de pé: “E nós, por de trás, vamos acertando as coisas”.

“Isso não vai dar certo, conheço o meu sobrinho, é do tipo trabalhador estúpido, mas, se vocês querem, farei contato”.

E os três voltaram a olhar pela janela a cidade lá fora. Centenas de edifícios, todos perfilados, e em cada uma daquelas salas iluminadas haveria de ter um trabalhador estúpido trabalhando em busca do seu salário. 

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