Cenário: sala do Chefe da Fiscalização. Personagens: Chefe e Fiscal.
Sobe o pano.
Fiscal – Bom dia, chefe, você me chamou?
Chefe – Bom dia, Machadão, eu quero falar com você... Senta aí, por favor.
Fiscal – Algum problema?
Chefe – Você lembra a nossa conversa de um tempo atrás, quando eu disse que você deveria ser mais objetivo ao lavrar um auto de infração?
Fiscal – Lembro muito bem, e estou seguindo suas ordens...
Chefe – Acho que não... Estou aqui examinando esse processo, que você autuou o Mercado Sai de Baixo...
Fiscal – Foi impugnado?
Chefe – Ainda não e nem teve tempo, a notificação foi entregue ontem.
Fiscal – Então qual é o problema?
Chefe – O problema é aquele antigo, Machadão, essa forma de você redigir o auto.
Fiscal – Está errado?
Chefe – Veja o que você escreveu no histórico (lendo): “Ao transpor os umbrais do Mercado...” Umbrais, Machadão?
Fiscal – Sim! Não ficou bonito? Vou chamar de quê, se não é porta ou portaria? Umbral significa entrada, mas a palavra umbrais tem mais força do que entradas, você não concorda?
Chefe – Deixa eu continuar (lendo): “... Os umbrais do Mercado, deparei-me, oh Deus, com dísticos dependurados como um céu de estrelas...”
Fiscal – Não ficou bonito? Aliás, eu aí fiz uma pequena homenagem a Silvio Caldas, lembrando Chão de Estrelas, uma jóia da nossa música, você não concorda?
Chefe – Meu amigo Machadão, eu concordo, mas prestar homenagem na lavratura de um auto? Você não acha meio despropositado? E essa interjeição: oh Deus, pra quê isso?
Fiscal – Ora, chefe, pra dar força ao sentido, pra expressar o meu espanto.
Chefe – Machadão, Machadão, você não precisa exprimir espanto, você tem que se restringir ao fato e à sua irregularidade. O auto tem que ser impessoal!
Fiscal – Desculpe, chefe, mas discordo. O Fiscal tem que manifestar suas emoções, seus sentimentos, se não for assim o nível cai. Se o auto tem que ser impessoal, daqui a pouco não vão precisar de Fiscal, o computador emite e pronto!
Chefe – Pois este é o caminho, Machadão! Criar uma uniformidade, um padrão...
Fiscal – E onde fica o estilo de cada Fiscal? Aquele toque pessoal?
Chefe – O auto não é lugar para estilo, para toque pessoal!
Fiscal – Bem... Você é quem manda... Eu discordo, mas vou seguir suas ordens.
Chefe – Eu gostaria que você entendesse o motivo e não apenas cumprir ordens.
Fiscal – Tudo bem. Então me faz um favor, me devolve o processo do Bar Eu Bebo Sim... Se você não gostou desse, por certo não vai gostar do outro...
Chefe – Por quê?
Fiscal – Porque eu lavrei o auto em forma de soneto, dois quartetos e dois tercetos, tudo rimado, como manda o figurino! Ficou uma beleza, mas se você não gosta, paciência, eu mudo.
Desce o pano.
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