Tenho certa implicância com a expressão “atividades mistas” e confesso minha absoluta ignorância de entendê-la. Se eu fizer compras no mercado e este entrega “gratuitamente” as mercadorias na minha casa, o serviço de transporte é prestação-meio e a compra de mercadorias a prestação-fim. Não há que dizer, no caso, que houve atividade mista, pois a entrega da compra é desprovida de onerosidade e, consequentemente, não representa um “fato econômico de relevância jurídica” (assim dizia Amílcar de Araújo Falcão). O custo do transporte, por evidência, integra o custo da mercadoria. Ao contrário, porém, se a entrega da mercadoria no domicílio do comprador for cobrada a parte, e, portanto, negociada independentemente da operação de compra de mercadoria, aí, então, serão duas operações jurídicas distintas, negociadas e assumidas pelas partes contratantes.
Um exemplo mais complicado: vou à vidraçaria e peço preço de um vidro cortado sob medida, de espessura e qualidade determinada, para ser instalado na janela da minha casa. Provavelmente, o vidraceiro vai apresentar um único preço, no qual inclui o valor do vidro e o valor do serviço de cortá-lo e de efetuar a instalação. Isso seria uma “atividade mista”? Não! Pois estou firmando um contrato de empreitada global com o vidraceiro, levando em conta a natureza da operação que somente se concretizará com o resultado do serviço. Não estou, na verdade, comprando um vidro, estou contratando ou encomendando um serviço e o adimplemento da obrigação pelo vidraceiro somente ocorrerá quando o vidro for assentado na janela e eu dado por satisfeito. E tanto é assim que pode o vidraceiro nem ter o vidro no seu estoque e sair a procurá-lo para atender o pedido. Como, também, pode não ter pessoal para fazer a instalação e ser obrigado a contratar alguém para isso.
Outro exemplo: uma construtora empreiteira está construindo um prédio e pretende contratar uma empresa de mármore para fornecer e instalar os mármores nas pias e bancadas dos banheiros. A construtora analisa duas possibilidades de contratação: a) adquire o material (o mármore) nas especificações requeridas e o seu próprio pessoal executa a instalação; ou b) contrata a empresa para executar todo o serviço, ou seja, entrar com o material e o serviço de instalação. A primeira hipótese seria um contrato de compra e venda, mesmo que o mármore seja fornecido da forma solicitada (já cortado e preparado). A segunda hipótese seria um contrato de empreitada global. Apenas para lembrar, o art. 610 do Código Civil diz que o empreiteiro de uma obra pode contribuir para ela só com seu trabalho ou com ele e os materiais. Na primeira hipótese, o trabalho de preparar o mármore e adequá-lo às condições requeridas pelo comprador são tarefas intermediárias indispensáveis à conclusão do negócio, que é a compra e venda. Na segunda hipótese, o fornecimento do mármore é parte integrante e condição básica do facere, da prestação do serviço.
Por isso tudo, fico intrigado com a decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre lentes oftálmicas. O Ministro relator, Luiz Fux, citou decisão anterior do STJ que diz o seguinte: “sobre operações ‘puras’ de circulação de mercadoria e sobre os serviços previstos no inciso II, do art. 155 da CF (transporte interestadual e internacional e de comunicações) incide ICMS; b) sobre as operações ‘puras’ de prestação de serviços previstos na lista de que trata a LC 116/03 incide ISS; c) e sobre operações mistas, incidirá o ISS sempre que o serviço agregado estiver compreendido na lista de que trata a LC 116/03 e incidirá ICMS sempre que o serviço agregado não estiver previsto na referida lista”.
O que vem a ser “operação pura” de serviço ou de circulação de mercadoria? No caso de serviço, talvez seja aquilo que Geraldo Ataliba e Aires Fernandino Barreto classificam como “serviço puro”, que seria “aquele cuja prestação prescinde quer de instrumento, quer de aplicação de materiais”. Pergunto: quem pode me dar um exemplo de ‘serviço puro’? O talentoso Marcelo Caron Baptista dá o exemplo de um carregador braçal que exerce sua atividade com o próprio corpo e de nada mais necessita. Pois acho que o próprio carregador braçal precisa alimentar-se para fortalecer o corpo e, assim, ter condições de prestar o serviço que exige força física. Pode-se afirmar que não existe prestação de serviço sem o emprego de bens, sejam materiais ou imateriais. Afirmo que ‘serviço puro’ é uma ficção acadêmica. E da mesma forma, inexiste venda de mercadoria sem que haja um serviço integrado na operação. Podem pensar num exemplo e depois me digam se descobriram alguma operação de compra e venda sem a realização de um serviço. Ou vice-versa.
Mas não dizer com isso que todas as operações são “atividades mistas”, por não serem ‘puras’. O que temos são operações que contém unicamente uma prestação-fim, mas podem exigir diversas atividades intermediárias ou precedentes à concretização do objeto do negócio, ou seja, daquilo que foi contratado, a prestação-fim que se pretende alcançar.
O caso das lentes oftálmicas serve nitidamente como exemplo. Armação de óculos é mercadoria vendida em prateleira. Não há qualquer dúvida de que se trata de operação de compra e venda. Qualquer pessoa pode adquirir uma armação de óculos sem lente, porque o preço lá está fixado. Esta é uma operação, clara e distinta de qualquer outra. Mas, se alguém quiser, além dos óculos, as lentes oftálmicas, vai ocorrer uma segunda operação, um segundo negócio: o serviço de elaboração de lentes por encomenda e para uso específico do usuário final. São, portanto, duas operações distintas e bem definidas. É possível, porém, que a ótica, igual o exemplo do mercado no caso da entrega a domicílio, não adicione preço pela elaboração das lentes, desde que a armação de óculos seja ali comprada. Em tal situação, a elaboração das lentes passa a ser apenas uma prestação-meio, incorporando o seu custo no preço de venda dos óculos. Mas, se houver preço distinto nas duas operações, teremos o ICMS, incidindo no preço dos óculos e o ISS, incidindo no preço das lentes.
E, finalmente, a dizer que tal serviço não consta da lista, por certo o julgador não observou o item 4 - “serviços de saúde, assistência médica e congêneres”. Lente de grau ou de contato não deixa de ser um serviço de saúde, e se assim não for, pelo menos é um serviço congênere. Como a lista da lei complementar é normativa, “lei para fazer leis”, como diz Sacha Calmon, poderia o legislador municipal incluir um subitem no item 4, específico para esse serviço.
Roberto Tauil - fevereiro de 2011.
Nenhum comentário:
Postar um comentário