domingo, 7 de julho de 2013

Relatório Fiscal


Processo nº. 402.338/75 – Ordem de Fiscalização nº 0385/75
Finalidade: Vistoriar a Fazenda Sagrada Família para fins de apuração do ITR.

 Senhor Diretor,

Lamento informar o fracasso da minha tentativa de vistoriar a Fazenda Sagrada Família, na região do alto Tietê, São Paulo, nas proximidades da localidade de Feliciano.

O descumprimento da minha obrigação deveu-se aos fatos abaixo narrados, alheios totalmente a minha vontade, razão de solicitar a compreensão de V. Sª e de despachar o processo sem o resultado da vistoria, uma falha processual, entendo perfeitamente as prováveis contrarrazões, mas que poderia ser dissimulada por motivo relevante aos trâmites administrativos, dispensando-se o procedimento por “ordens superiores”, fato que se sabe rotineiro nos dias atuais, se V. Sª me permitir tal sugestão.

Ao chegar à região de Feliciano, aproximei-me de um pequeno lugarejo onde todos os habitantes andavam cabisbaixos, olhando para o chão, atitude bem diferente das demais localidades cuja presença de um estranho despertava a curiosidade de todos, dirigindo seus olhares indiscretos ao visitante, contudo, estranhamente, passavam sem notar a minha presença ou fingiam não me ver, comportamento logo percebido que não era pessoal, porque ninguém se falava, não se olhava, como se nada mais existisse ao redor.

A não ser o som do motor do meu carro e o persistente latido de um cachorro vadio, desmerecedor também de qualquer atenção por parte dos transeuntes, o lugarejo parecia coberto de uma fúnebre mortalha a exigir um silêncio absoluto, de respeito a qualquer acontecimento havido, sobre o qual eu desconhecia completamente o seu fundamento.

Entrei no bar e em cada mesa um cidadão solitário, sentado, a beber sua bebida, segurando seu copo, de olhar fixo na ponta de seus sapatos ou na garrafa à sua frente, todos calados, talvez entretidos em pensamentos sinistros, mas não deixei minha educação de lado e cumprimentei aquele que parecia ser o dono do bar, a provocar de imediato, o som da minha voz, um desencadeamento de movimentos bruscos, com a fuga de vários clientes, todos correndo porta a fora, como se o meu cumprimento fosse um grito ofensivo e ameaçador, deixando o dono do bar perplexo e, sempre cabisbaixo, a segredar ao meu ouvido com a voz trêmula: “Fale baixo!”.

Em tais circunstâncias, somos geralmente levados a concordar e acompanhar as normas existentes, motivo de minha resposta sair sussurrante: “O que está acontecendo?”, e ter de resposta: “Cuidado! Alguém pode ouvir nossa conversa” e imediatamente afastou-se de mim, pois foi a recolher copos e garrafas abandonadas nas mesas, deixando-me acompanhado apenas da minha profunda surpresa, afinal, quem estaria interessado em ouvir a nossa conversa, se, aliás, nem conversa existira, tão somente um cumprimento?

Ainda intrigado com tais estranhas reações, fui repentinamente cercado por sisudos policiais e conduzido à delegacia da cidade, não só eu, mas também o dono do bar, que esperneava e sussurrava sua inocência e a cada momento tomava violenta bordoada que eu já não sabia se os sussurros eram frutos da inocência anunciada ou das dores sofridas pelos golpes, e quanto a mim logo percebi a truculência da ação policial, motivo razoável para não reagir e nada contestar, o que por certo me livrou do espancamento, tudo há de ser esclarecido na delegacia, assim eu pensava.  

Foi ou não foi esclarecida a ocorrência até hoje não sei, porque o delegado insistia em acusar-me de conspiração, conluio e formação de quadrilha, pois várias testemunhas denunciaram-me de ter usado um código ao dizer “bom dia” ao dono do bar, ou que eu dera uma ênfase nitidamente suspeita ao pronunciar a palavra “bom”, estendendo o som, parecido com “boooommm”, sem dúvida, uma conotação manifestamente indiciadora de uma mensagem criminosa, aquela forma de expressar-se, como se fosse uma senha previamente combinada entre terroristas, e de dedo em riste a chamar-me de comunista ou ativista, não entendi bem.  

Passei o dia a protestar inocência, provando que nunca vira o dono do bar, que eu era um forasteiro, auditor fiscal federal devidamente concursado, o que comprovei esvaziando meus bolsos, documentos e dinheiro, este retido pelas autoridades para posteriores averiguações de sua legitimidade e não mais devolvido.

Durante o interrogatório queriam saber o motivo da minha presença na localidade e ao dizer o nome da fazenda a ser vistoriada, senti a forte preocupação dos policiais a insistirem pela confirmação de que a fazenda era aquela mesma, de propriedade do Dr. Fulano de tal, e eu confirmava que sim, porém, já sem saber se a informação me ajudava ou piorava a minha periclitante situação.

Ao anoitecer, fui liberado às pressas, sob ordem de abandonar imediatamente a região, e não vistoriar fazenda coisa alguma e se essas ordens não fossem cumpridas eu seria preso e levado a destino ignorado, e, enquanto eu negociava minha soltura, vim a saber pelo delegado que o dono do bar seria mantido preso até a conclusão das investigações, devido também às suspeitas antigas que havia contra ele em denúncias sobre a maneira de lavar os copos, assim, da direita para esquerda, muito suspeito mesmo, e a forma de recolher o lixo e de olhar os fregueses.

Foi esse o motivo que me levou a não vistoriar a fazenda. Tenho certeza que V. Sª entenderá as razões e dará irrelevância ao descumprimento da obrigação. Este é o relatório.

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