Processo nº. 402.338/75 – Ordem de
Fiscalização nº 0385/75
Finalidade: Vistoriar a Fazenda
Sagrada Família para fins de apuração do ITR.
Lamento informar o fracasso da
minha tentativa de vistoriar a Fazenda Sagrada Família, na região do alto
Tietê, São Paulo, nas proximidades da localidade de Feliciano.
O descumprimento da minha
obrigação deveu-se aos fatos abaixo narrados, alheios totalmente a minha
vontade, razão de solicitar a compreensão de V. Sª e de despachar o processo
sem o resultado da vistoria, uma falha processual, entendo perfeitamente as
prováveis contrarrazões, mas que poderia ser dissimulada por motivo relevante aos
trâmites administrativos, dispensando-se o procedimento por “ordens
superiores”, fato que se sabe rotineiro nos dias atuais, se V. Sª me permitir
tal sugestão.
Ao chegar à região de Feliciano,
aproximei-me de um pequeno lugarejo onde todos os habitantes andavam
cabisbaixos, olhando para o chão, atitude bem diferente das demais localidades
cuja presença de um estranho despertava a curiosidade de todos, dirigindo seus
olhares indiscretos ao visitante, contudo, estranhamente, passavam sem notar a
minha presença ou fingiam não me ver, comportamento logo percebido que não era
pessoal, porque ninguém se falava, não se olhava, como se nada mais existisse
ao redor.
A
não ser o som do motor do meu carro e o persistente latido de um cachorro vadio,
desmerecedor também de qualquer atenção por parte dos transeuntes, o lugarejo
parecia coberto de uma fúnebre mortalha a exigir um silêncio absoluto, de
respeito a qualquer acontecimento havido, sobre o qual eu desconhecia completamente
o seu fundamento.
Entrei
no bar e em cada mesa um cidadão solitário, sentado, a beber sua bebida, segurando
seu copo, de olhar fixo na ponta de seus sapatos ou na garrafa à sua frente,
todos calados, talvez entretidos em pensamentos sinistros, mas não deixei minha
educação de lado e cumprimentei aquele que parecia ser o dono do bar, a
provocar de imediato, o som da minha voz, um desencadeamento de movimentos
bruscos, com a fuga de vários clientes, todos correndo porta a fora, como se o
meu cumprimento fosse um grito ofensivo e ameaçador, deixando o dono do bar
perplexo e, sempre cabisbaixo, a segredar ao meu ouvido com a voz trêmula:
“Fale baixo!”.
Em
tais circunstâncias, somos geralmente levados a concordar e acompanhar as
normas existentes, motivo de minha resposta sair sussurrante: “O que está
acontecendo?”, e ter de resposta: “Cuidado! Alguém pode ouvir nossa conversa” e
imediatamente afastou-se de mim, pois foi a recolher copos e garrafas
abandonadas nas mesas, deixando-me acompanhado apenas da minha profunda
surpresa, afinal, quem estaria interessado em ouvir a nossa conversa, se,
aliás, nem conversa existira, tão somente um cumprimento?
Ainda
intrigado com tais estranhas reações, fui repentinamente cercado por sisudos
policiais e conduzido à delegacia da cidade, não só eu, mas também o dono do
bar, que esperneava e sussurrava sua inocência e a cada momento tomava violenta
bordoada que eu já não sabia se os sussurros eram frutos da inocência anunciada
ou das dores sofridas pelos golpes, e quanto a mim logo percebi a truculência
da ação policial, motivo razoável para não reagir e nada contestar, o que por
certo me livrou do espancamento, tudo há de ser esclarecido na delegacia, assim
eu pensava.
Foi
ou não foi esclarecida a ocorrência até hoje não sei, porque o delegado
insistia em acusar-me de conspiração, conluio e formação de quadrilha, pois
várias testemunhas denunciaram-me de ter usado um código ao dizer “bom dia” ao
dono do bar, ou que eu dera uma ênfase nitidamente suspeita ao pronunciar a
palavra “bom”, estendendo o som, parecido com “boooommm”, sem dúvida, uma
conotação manifestamente indiciadora de uma mensagem criminosa, aquela forma de
expressar-se, como se fosse uma senha previamente combinada entre terroristas,
e de dedo em riste a chamar-me de comunista ou ativista, não entendi bem.
Passei o dia a protestar
inocência, provando que nunca vira o dono do bar, que eu era um forasteiro, auditor
fiscal federal devidamente concursado, o que comprovei esvaziando meus bolsos,
documentos e dinheiro, este retido pelas autoridades para posteriores
averiguações de sua legitimidade e não mais devolvido.
Durante o interrogatório queriam
saber o motivo da minha presença na localidade e ao dizer o nome da fazenda a
ser vistoriada, senti a forte preocupação dos policiais a insistirem pela
confirmação de que a fazenda era aquela mesma, de propriedade do Dr. Fulano de
tal, e eu confirmava que sim, porém, já sem saber se a informação me ajudava ou
piorava a minha periclitante situação.
Ao anoitecer, fui liberado às
pressas, sob ordem de abandonar imediatamente a região, e não vistoriar fazenda
coisa alguma e se essas ordens não fossem cumpridas eu seria preso e levado a
destino ignorado, e, enquanto eu negociava minha soltura, vim a saber pelo
delegado que o dono do bar seria mantido preso até a conclusão das
investigações, devido também às suspeitas antigas que havia contra ele em
denúncias sobre a maneira de lavar os copos, assim, da direita para esquerda,
muito suspeito mesmo, e a forma de recolher o lixo e de olhar os fregueses.
Foi esse o motivo que me levou a
não vistoriar a fazenda. Tenho certeza que V. Sª entenderá as razões e dará irrelevância
ao descumprimento da obrigação. Este é o relatório.
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