Diante do clamor de tanta perversidade, imoralidade e desonestidade de seus habitantes, Deus resolve destruir Sodoma e Gomorra (Sodom e Amorah) e comunica o fato a Abraão. O patriarca tenta salvar as cidades: “Talvez haja cinquenta justos na cidade! Sucederia ao justo o mesmo que ao culpado?” Javé concorda, mas com uma condição, salvaria a cidade, se ali fossem encontrados os tais cinquenta justos. Abraão agora já se preocupa com o número mencionado precipitadamente, de forma irrefletida e, como um bom judeu, negocia um abatimento no número, diminuindo cada vez mais o total de pessoas boas, até fechar o acordo com o número de dez justos. Como se vê, Alá nunca foi inflexível. Provavelmente, divertia-se com a argúcia do líder dos hebreus.
Dois anjos são enviados para executarem a pesquisa de campo, ou seja, fazer o recenseamento das pessoas boas, e encontram somente um, o Senhor Lot, que é autorizado a deixar a cidade, antes da destruição.
Se me permitem uma interpretação laica do texto bíblico, não tenho dúvidas que mais pessoas justas existiam na cidade, mas os bons normalmente não aparecem, ficam em suas casas descansando após um dia de labuta, não têm tempo de ir às ruas, por desânimo, cansaço ou medo, e participar de manifestações contra a ignomínia social e política reinante, e por temer a presença dos bandidos e vândalos que se aproveitam da reunião dos justos para saquearem as lojas e lançarem coquetéis molotov na polícia. Os bons não se reúnem, ao contrário dos maus que formam quadrilha, bando, corja, máfia. Nem denominação própria teria um inusitado grupo de boas pessoas reunidas. Se não existissem mais justos em Sodoma e Gomorra, as cidades não teriam nascido, pois o mal nada constrói. O único que deu às caras foi Lot, ao acolher os anjos recenseadores em sua casa. Os restantes se amoitaram com medo da horda de malfeitores. As cidades são construídas por pessoas de bem e depois destruídas pelo desatino dos governantes e por um bando de desgovernados.
O Senhor Lot não estaria vivendo em Sodoma se fosse realmente a única pessoa boa e correta; ninguém consegue viver sem estar incorporado a um laço social, a uma comunidade de iguais. Mas os bons se aquietam nos seus cantos. Vivemos num mundo de predadores e cercados de armadilhas e ardis. Somos ludibriados a todo o momento, pela televisão, internet, jornais, telefonemas, por bandidos que se passam por comerciantes, prestadores de serviços e por políticos. Adquirimos produtos enganosos que nos são vendidos com a maior desfaçatez. Somos furtados e roubados descaradamente, por ações ardilosas ou brutalmente às claras. Somos as vítimas diretas da prepotência, do cinismo e da hipocrisia dos políticos. Nós somos os otários!
E não somos muitos, talvez, uma minoria. Somos, afinal, a personificação do Senhor Lot, e, como ele fez, já está na hora de fazer as malas e dar no pé. Deus já deve estar ouvindo o relato dos seus anjos sobre o comportamento de nossas cidades. E as notícias certamente não são boas.