“Ad rastro solidão!”, disse-me o fantasma às minhas costas, naquele jeito truncado do falar dos fantasmas, cujo sentido interpreta-se aos poucos, com a dificuldade normal dos viventes de entender as mensagens internadas no passado.
Uma explicação: tenho recebido fantasmas na minha casa, são três precisamente e todos abusados. Entram sem pedir licença, invadem o meu espaço com ares de dono da casa, mexendo em tudo, passando o dedo nos móveis e ironizando a presença de poeira, “empregada aqui tem não?” perguntam com aquele sorriso malévolo, típico de fantasmas.
No início, levei um susto, hoje já estou acostumado, ficam aqui, ao meu lado, xeretando tudo que faço, agora mesmo tem um a chamar os outros e dizer que estou escrevendo sobre eles. “De nós escrever vai?” Se tem algo que me irrita nesses fantasmas é essa forma de falar, enviesada. Não respondo, aliás, nunca respondo indagações de fantasmas, seria a prova de suas existências e de que estou ficando maluco.
Mas aquele “ad rastro solidão” me deixou intrigado. O que ele quis dizer? Aguentei firme e não perguntei, seria um início de conversa e eu nunca conversarei com fantasmas! Que frequentem a minha casa, perambulem por aí, mexam em tudo, mas conversar nunca! Mesmo assim, o “ad rastro solidão” não me sai da cabeça.
Outra explicação devida é a de que já conheço esses três fantasmas que resolveram me importunar. Um deles é da minha infância, sei disso pelas referências que faz de uma vida distante, coisas das quais me lembro, embora remotamente. Outro é do meu tempo de adolescência, comentários maliciosos a certas coisas que fiz na juventude. O terceiro parece ser da minha idade adulta, mas, curioso, me acusa de fatos praticados que juro não lembrar. Mais fácil lembrar-se do tempo da infância do que de fatos ontem ocorridos.
Eles não têm imagens, facilitaria distingui-los se tivessem. São sombras, somente sombras, que vagueiam ao meu redor. E o prazer deles é criticar-me! Só falam mal de mim, nenhuma palavrinha de elogio ou de consideração. Não é por que estou aqui para ficar ouvindo elogios de fantasmas, ora, quem se importa com fantasmas! Mas, por favor, viver cercado de fantasmas a falar mal o tempo todo, tenha paciência! Parece até que a minha vida foi toda de erros e pecados. Pois não foi! Tenho certeza de que fiz coisas boas! “Boas quais fez?”. Sei lá! Não estou aqui para refletir sobre o meu passado, não vivo a olhar para trás. E não lhe respondo, fantasma imbecil, apenas escrevo.
Agora os três conversam, confabulam, trocam informações a meu respeito. Não sei do que falam, mas tudo é mentira, tenho certeza. Vou negar sempre, não fiz nada disso, tenho a consciência tranquila... “Ad rastro solidão”, o que ele quis dizer?
“Fraco pulmão bateu nele de menino”... E vem me lembrar isso agora? Eu me lembro sim! Eu era uma criança! Não sabia que o garoto era fraco dos pulmões! Só vim a saber quando a mãe dele foi se queixar com a minha. E não vem me dizer que ele morreu por minha causa, ela já sofria dos pulmões. Este é um assunto já esquecido, tantos anos se passaram...
“Menina deflorou grávida talvez”... Grávida? Nunca soube disso! Éramos jovens, inconsequentes, é verdade, eu tinha... O quê? Dezessete anos, acho. Foi um namorinho... Ela tinha quatorze, se não me engano... Ela chorou... Eu nunca soube nada de gravidez... Fui embora daquela cidade no dia seguinte, mas ela sabia onde eu morava... A cidade, pelo menos... Acho que não dei o endereço... Nunca mais nos vimos... Grávida?
“Suicida amigo ajuda pede conhecer finge não”... O quê é isso? Aconteceu quando? Não me lembro de amigo nenhum me pedindo ajuda, fantasma nojento! Ah! Está se referindo àquele cara, qual era o nome dele... Não me lembro, mas ele nunca foi meu amigo! Sei que ele me ajudou um dia... Por interesse! Eu era o seu chefe, queria me agradar. Ele suicidou-se... Eu não sabia... Alguém comentou... Não prestei atenção...
Fantasmas importunos! Ironia da vida... Agora, já velho, a morar sozinho nesta casa aos pedaços, sem ninguém a me procurar, quem me aparece? Esses fantasmas que atormentam o meu sossego. “Ad rastro solidão”... O quê ele quis dizer?
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