segunda-feira, 13 de junho de 2016

Versos do sufixo ente

Notícia de jornal: “Caiu neve em São José dos Ausentes”

Sou de São José dos Ausentes
(apesar de presente),
vivo na terra dos ausentes,
do frio ao calor inclemente,
de grandes rios, montanhas e vertentes,
uma nação continente!
Terra dos profetas videntes,
de bizarros presidentes,
de cândidos docentes,
de aulas vazias, mas eloquentes.

Quem diria! Já tivemos o inconfidente,
o castigo de Tiradentes.
Houve a saga dos tenentes,
a rebelião dos crentes,
o massacre dos insurgentes.

Afinal, sou de São José dos Ausentes,
da destruição do meio ambiente,
de investimentos decadentes,
de banqueiros imprudentes,
da esperteza reticente,
da camarilha subserviente,
do 'silêncio dos inocentes'.

Sou de São José dos Ausentes,
já velho, cansado e doente,
como muitos desse contingente.
Assiste-se a tudo pacientemente,
essa realidade indecente.
A tristeza com os jovens e carentes
sem perspectivas pela frente.
A não ser essa neve indolente,
a cair suavemente,
nessa terra dos ausentes. 

sexta-feira, 10 de junho de 2016

A Cegueira Deliberada

- Amô! Você está atrasada! Ainda não se vestiu?

- Sabe que é? Não sei a roupa que devo usar no depoimento.

- Põe qualquer uma! Juiz não gosta de esperar!

- Qualquer uma? E eu sou mulher de sair com qualquer uma roupa?

- Tá bom! Mas decide logo! E não esqueça que de lá podemos seguir direto para a prisão!

- É por isso que estou em dúvida... Qual é a moda que se usa na prisão?

- Não sei, amô! Veste uma simplizinha...

- Estou pensando nesse Dolce & Gabbana que comprei em Paris...

- Não tem coisa... Mais leve?

- Ora, posso usar esse Oscar de la Renta que comprei em Roma.

- Desculpe, amô, mas não pode ser algo, vamos dizer, mais leve ainda?

- Só se eu vestir esse Chanel que comprei em Nova York. Mais leve do que isso, impossível! Lembra que comprei esse modelo quando a gente estava dura! Custou só uns 60 mil reais, lembra?

- Desculpe, amô, por obrigar você a passar por isso, mas já estavam de olho na gente...

- Eu sei, amô, não sou tão tola assim, mas a vergonha que passei ao comprar um vestido barato como esse! A vendedora pensou que eu era pobre! Uma favelada carioca!

- Eu sei, eu sei, mas anda logo, amô! Depois eu lhe compenso...

- Não sei como! Vai tirar desse salário de pobre que você ganha?

- Não!! Ainda têm alguns negócios por aí!

- Não me conte! Não quero saber de onde vem o dinheiro, onde você consegue. Afinal, eu só sei gastar!

- Está bem! Não conto, mas anda logo, por favor!

- Amô! Agora estou com dúvida do sapato... Você acha que esse Louis Vuitton combina com o vestido?

quarta-feira, 8 de junho de 2016

O Moralista

Bombósio Espinafro, indicado para investigar políticos pela prática de delitos, deu início às suas árduas tarefas nas câmaras municipais da vasta região de sua competência, a perseguir os passos da vereança lá aquartelada. Ao puxar um fio de suspeita deparava-se com outro e mais outro, até formar um nó embolado de difícil desatamento. Chegou à conclusão de que todos os edis estavam engajados nos crimes de peculato e, assim, a pedir a prisão de todos eles.

Câmara Municipal vazia voltou-se aos Prefeitos, a perscrutar suas vivências públicas e a concluir pela culpabilidade geral, de crimes praticados a esmo. Soltou relatório pedindo a prisão de todos.

Municípios acéfalos, partiu em direção ao Estado e acostou provas e presunções, dando-lhe embasamento à denúncia contra todos os deputados, suplentes e supérfluos, enfiando todos na cadeia. Não fez vista grossa aos governadores, ao apurar falhas licitatórias e outros despautérios, prendendo-os todos.

Mesmo engabelado no Congresso Nacional, manteve-se entono na sua plenitude de altivez e através de escutas sigilosas apurou a sem-vergonhice desenfreada, requerendo o acautelamento de todos os congressistas.

Foi, então, ao aproximar-se da casa mais alta, que constatou a terrível verdade de que se fossem presos todos os maledicentes nenhum sobraria. E, por certo, sendo a corrupção a regra maior, sem ressalvas e exceções, seria ele o verdadeiro criminoso e não os outros, os acoitados. Pois impossível germinar a honradez em meio à imoralidade consolidada e sedimentada em tantos anos de falcatruas.

Sim! Era ele, Bombósio Espinafro, o verdadeiro infrator, aquele que ruma em direção oposta, a tergiversar às normas regulamentares do ilícito, aquele que contraria as regras da conduta desmazelada e imposta a todos os homens de fé pública e de imoralidade ilibada! 

E foi assim que Bombósio Espinafro requereu à Justiça a sua prisão incontinenti, de preferência confinada em solitária de vigilância máxima, para que evite todas as formas de contágio do mal da honestidade que o aflige.